sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Discurso de Nilo Batista de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte Final





Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista 


VI

                             Quero rapidamente – tentando efetivar a promessa do discurso breve – pedir a atenção de meus Colegas para a cultura punitiva na qual estamos imersos.

                             A pena se converteu numa espécie de emplastro Braz Cubas para todas as mazelas nacionais; não há um só problema, um só conflito ao qual o Congresso Nacional não queira responder com o emplastro da criminalização primária (ou, quando ela já exista, com um aumento na escala penal ou um endurecimento no regime penitenciário).

                             Aquilo que jamais é enunciado, que permanece como um saber meio herético e meio insurgente, é o fracasso exaustivamente comprovado da pena cominada como modelador da conduta humana e da pena executada como instrumento das utopias ressocializadoras. No campo das ciências sociais o behaviorismo está desacreditado, e muitos autores, como Skinner, duvidavam da eficácia motivadora do castigo; correlatamente, em todas as ocasiões nas quais efeitos preventivos da pena puderam  ser objeto de pesquisa empírica, não foram comprovados. A reincidência penitenciária, cujas oscilações históricas nunca se afastam muito dos 70%, é a melhor demonstração de que a verdadeira obra da sociabilidade carcerária reside na reprodução da identidade infratora. Se impusermos coercitivamente a uma centena de infratores qualquer espécie de restrição de direitos que não envolva privação de liberdade, não sabemos quantos reincidirão; mas se os lançarmos numa penitenciária, sabemos que cerca de setenta reincidirão. Pois apesar dessas constatações, o Congresso Nacional e a mídia (talvez a ordem mais correta fosse a mídia e o Congresso Nacional), secundados por muitos operadores do sistema penal, seguem acreditando que o homem pode ser comportamentalmente manipulado, como o cachorro de Pavlov, e que a penitenciária é um lugar de reconstruir vidas (a despeito de que, em nosso continente, todo preso tenha dez vezes mais possibilidades de matar-se ou de ser morto do que nós).

                             A responsabilidade da mídia para com este quadro é evidente, e por mais bisonhos ou estúpidos que sejam os editoriais acerca do tema, o valor democrático da liberdade de imprensa torna-os intangíveis. Quanto ao noticiário sobre casos criminais, investigações ou processos, em minha opinião a coisa muda de figura. Existem, em países democráticos, muitos modelos restritivos nos quais poderíamos nos inspirar no momento de proceder à regulação deste setor. Muitos tribunais, a começar pela Suprema Corte estadounidense, e inúmeros estudiosos já perceberam os riscos do chamado trial by the media. Estamos aqui no campo de conflito entre o princípio da liberdade de informação e vários outros princípios, situados entre a presunção de inocência e o direito a um julgamento justo. Afirmo desta veneranda tribuna que a licenciosidade informativa, no circo dos “furos” da reportagem policial, na exposição de suspeitos ou acusados, na dignificação dos explicáveis sentimentos de vingança da vítima ou de seus familiares e em tantas outras frentes implica uma perda de qualidade na prestação jurisdicional e resulta frequentemente num linchamento virtual irreversível, mesmo quando sobrevenha uma absolvição. Será isto compatível com um Estado de direito cuja Constituição se comprometeu com a “dignidade da pessoa humana”, e declarou invioláveis “a honra e a imagem das pessoas” (arts. 1º, inc. III e 5º, inc. X)?

                             A cultura punitiva tem seu mais importante núcleo reprodutor na academia, refletindo-se diretamente na teorização jurídica e dela recebendo – na voz frequentemente leviana de certos “especialistas” – oportuna retroalimentação. Para ficar num exemplo, pensemos em duas concepções de delito que sempre se antagonizaram: para uma, sua essência estaria na desobediência (na violação da norma); para outra, na ofensa produzida (no dano ou no perigo concretamente realizados). Há uma relação histórica incontestável entre a primeira concepção e o Estado de polícia; não por coincidência, o direito penal nazista identificou-se e foi identificado como direito penal da vontade, e seus penalistas entreviam em cada conduta típica exercida uma espécie de traição ao Estado. Está hoje, entre nós, disseminada concepção similar, senão em suas premissas teóricas – que o pudor pode silenciar – certamente nas consequências (criminalização de atos preparatórios, crimes de perigo abstrato, formatação de delitos-obstáculo, rejeição da insignificância, punibilidade omissiva do descumprimento de deveres inúteis etc). Valha-nos como exemplo o parágrafo único do artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro, que para vergonha do penalismo nacional, apregoa praticar omissão de socorro o motorista que “deixar de prestar imediato socorro à vítima (...) ainda que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves” – dois casos, por certo, nos quais se impõe ao sujeito um dever inútil.

                             Não me deterei sobre a metástase da indústria cultural do crime, sobre esses enlatados que expõem a brutalidade da convivência carcerária, a frieza de justiceiros travestidos de policiais e até mesmo de juízes e, claro, a crueldade patológica de delinquentes cuja morte desperta no espectador uma estranha catarse, que a Profa. Verinha Malaguti Batista caracterizou como “adesão subjetiva à barbárie”.


                             Também não me deterei sobre a criminalização da vida pública, tão útil para consumar o exílio do debate político, e tão representativa da centralidade que a questão criminal indevidamente adquiriu.


                             Até onde o Estado de direito suportará esta centralidade? Até quando o Estado de direito conviverá com os deprimentes espetáculos punitivos que parecem dispor de bem equipadas centrais de produção? Outro dia, alguém no Rio selecionou quarenta mandados de prisão de quarenta processos completamente diferentes, com protagonistas e circunstâncias radicalmente distintas, para comemorar uma data relativa à violência doméstica com a exibição inconstitucional e ilegal de suspeitos, acusados ou condenados. E, há duas semanas atrás, em São Paulo, a Prefeitura e a Polícia Militar se conveniaram para enfrentar ... a gazeta escolar. Sim, isso mesmo, a Polícia vai correr atrás dos estudantes que estão “matando aula”: será que foi esta expressão, matar aula, que levou a prefeitura a reeditar no primeiro grau o que a administração do Estado já fizera na USP? O que falar de mulheres dando à luz algemadas?

                             Nesses tempos sombrios, é como se a pena se transformasse numa divindade, tal a crença em suas propriedades preventivas e expiatórias. Mas, queridos Colegas, olhemos para a história: sempre que um sistema penal se articulou em torno de uma divindade sua destrutividade foi incrementada, como na Inquisição. Por outro lado, sempre que a multidão pediu mais pena, mais e maiores condenações, mais sofrimento punitivo, a irracionalidade dominara: foi assim no nazismo.

                             O que nos espera? O cenário internacional é tenebroso, e caberia pensar, recorrendo a uma categoria política fora de moda, no advento de um imperialismo punitivo, que sob o lema – de cariz policial – da “proteção” é capaz de depor e matar, com ou sem figura de juízo, Chefes de Estado não alinhados, ou mesmo de cometer e comemorar um homicídio a sangue frio, e nem falemos de Guantánamo e do emprego autorizado da tortura.


                             O que nos espera aqui? Até onde o Estado de polícia chegará em sua ascensão constante, já sedimentada num fascismo social cujas marcas estão por toda parte?


VII

                             Na pessoa de um advogado criminal, o Instituto dos Advogados Brasileiros quis este ano homenagear a advocacia criminal.

                             Compartilho com todos os criminalistas brasileiros, dos Colegas aqui presentes aos mais distantes, empenhados todos na mesma luta de preservar o Estado de direito, a medalha recebida. Essa luta, dispersa e capilarizada, é agora mais importante do que nunca. Pouco importa se hoje somos olhados com preconceito e incompreensão. A história, que decanta e ilumina os acontecimentos, reservará para esses lutadores anônimos respeito e gratidão.

                             Senhor Presidente, exímio criminalista, filho e pai de criminalistas, muito obrigado. Aos distinguidos Advogados que integram o Conselho Superior, muito obrigado.

                             Os criminalistas procuraremos ser dignos da Medalha Teixeira de Freitas que hoje recebemos.


                             Muito obrigado.

Discurso de Nilo Batista em agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte II






Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista



III

                             O olhar acima remetido ao sistema penal de hoje poderia ser acoimado de corporativista, já que lançado da janela da advocacia criminal. Experimentemos, portanto, outra angulação.

                             Em 1988, tínhamos uma população carcerária em torno de 100.000 internos. Naquele ano, a Assembléia Nacional Constituinte promulgou a Constituição, declinando como primeiro objetivo fundamental da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I CR).

                             De lá para cá, vinte e três anos se passaram, e é razoável supor que as autoridades constituídas tenham trabalhado intensamente na construção dessa “sociedade livre”.

                             Temos hoje aproximadamente 500.000 internos e 700.000 pessoas sob controle de agências do sistema penal (suspensões condicionais do processo ou da pena, livramento condicional, penas restritivas de direitos etc), totalizando 1.200.000 brasileiros criminalizados.

                             Ou seja, para construir uma “sociedade livre” prendemos – seja com as grades da penitenciária, seja com a tornozeleira eletrônica, seja com a supervisão periódica de uma agência do sistema penal – prendemos doze vezes mais gente do que encontráramos por ocasião do marco zero da redemocratização.

                             Para quem acredita que a privação de liberdade ressocializa, talvez não pareça estranho construir uma “sociedade livre” prendendo massivamente.

                             Contornemos a prudente distância as interpretações deste inchaço no encarceramento produzido após a chamada “Constituição cidadã”, especialmente aquelas interpretações que remetem à transição do capitalismo industrial para o capitalismo transnacional vídeo-financeiro, às transformações macroeconômicas pelas quais já passamos e, tudo indica, ainda estamos passando. Todos temos nossas interpretações, divergentes e por vezes antagônicas: a minha é bastante conhecida, e nem tive muito como ser discreto a seu respeito. Contudo, não precisamos de interpretações quando há unanimidade acerca do fato escandaloso de estarmos vivendo o maior encarceramento de nossa história. Compartilhamos essa vergonha, e podemos perfeitamente dispensar-nos de divergir sobre suas origens, já que estamos de acordo quanto a sua presença.


IV

                             A chamada militarização da segurança pública constitui um sintoma muito preocupante. O envolvimento das Forças Armadas em tarefas policiais é algo corrosivo para os rígidos padrões da organização militar e simultaneamente dinamizador de abusos e violências para a instituição policial.

                             Forças Armadas bem adestradas e equipadas constituem o pressuposto essencial de nossa soberania. Destinou-as a Constituição “à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais”; seu emprego supletivo, por iniciativa dos poderes da República, na manutenção “da lei e da ordem” (art. 142 CR) deveria restringir-se às hipóteses de Estado de Defesa e Estado de Sítio. Aliás, apenas lei complementar poderia dispor sobre o emprego das Forças Armadas (art. 142, § 1º CR), e nunca um mero decreto ou mesmo uma lei ordinária. Vulgarizou-se todavia a participação militar em conflitos civis criminalizados. Conheci de perto o início dessa vulgarização, sobre o qual pretendo um dia discorrer. O que ora desejo ressaltar é que existiu um projeto, oriundo do hemisfério norte, de converter as Forças Armadas latinoamericanas em milícias lançadas ao retumbante fracasso da chamada guerra contra as drogas, e que tal projeto – intencionalmente ou não – resulta numa deterioração dos contingentes assim empregados (policização). Quem tiver alguma dúvida, olhe para a experiência do México.

                             A aproximação entre o poder militar e o poder punitivo tem efeitos desastrosos para o Estado de direito. As Forças Armadas são para a guerra assim como a instituição policial é para a lei. O militar é adestrado para o inimigo, o policial para o cidadão. A guerra se resolve pela força, a criminalização pelo direito. Na estrutura militar, a obediência integra a legalidade; na estrutura policial, a legalidade é condição prévia da obediência. Não estamos diante de adestramentos similares ou assimiláveis; pelo contrário, são eles bem distintos, e dirigidos a situações também muito distintas. Olhem para o século XX, o século dos genocídios: perto de cada um deles há sempre uma polícia completamente militarizada ou Forças Armadas exercendo funções policiais. As fotos dos choques-de-ordem nazistas não serão suficientemente didáticas? O sistema de responsabilização é também radicalmente diferente. Não há ordens vinculantes para o policial, adstrito a aferir a legalidade de todas e de cada uma delas antes de executá-las; num teatro de guerra, tal rotina desaguaria em cômica derrota.

                             Entre os paradoxos dos tempos sombrios que vivemos está o fato de ter tocado aos governos civis posteriores à Constituição a militarização da segurança pública. Sim, com exceção do subsistema penal DOPS-DOI/CODI, que se ocupava estritamente dos então chamados crimes contra a segurança nacional, não passou pela cabeça de nenhum general alçado à Presidência da República expandir competências militares na direção da segurança pública. Talvez latejassem em suas consciências as enérgicas palavras com as quais o Marechal Deodoro da Fonseca, em 1887, na condição de presidente do Clube Militar, pleiteou da Princesa Isabel, no exercício da Regência, que o Exército não fosse empregado naquilo que chamou de “papel menos decoroso e menos digno”, referindo-se à captura de escravos foragidos. Nossas Forças Armadas não podem converter-se numa espécie de capitão-do-mato dos quilombos urbanos que o neoliberalismo agigantou.

                             Para encerrar o rol dos paradoxos, miremos este estranho personagem glorificado pela mídia e aplaudido em cena aberta, o intimorato Capitão Nascimento. Trata-se, sem dúvida, de um torturador; um assumido e convicto torturador. Como compreender que durante a ditadura o torturador fosse olhado – e assim continua a ser olhado hoje – como um vilão, como uma criatura degradada e repulsiva, e hoje um torturador seja uma espécie de herói nacional?


V

                             Voltemos nossos olhos para os juízes. Eu gostaria de poder, como Calamandrei, elogiá-los a todos, inclusive ao que dormita durante a sustentação (e não seria difícil ressaltar-lhe a elevação espiritual, que troca o mesquinho debate sobre interesses terrenos pela transcendência dos sonhos). Temo, contudo, que esses tempos sombrios tenham produzido uma nova espécie de juiz que talvez nem Calamandrei conseguisse elogiar.

                             A construção da persona judicial no ocidente constitui um longo e inconcluso percurso. Muitos traços de estereótipos judiciais históricos subsistem na cultura forense, e às vezes irrompem, quais fantasmas, nas salas de audiência republicanas. Aquele iudex perfectus que o direito canônico desenhou, espelho decaído do Julgador Onipotente, dispensado de toda fundamentação pela fiança de suas virtudes, não se deixa entrever por vezes em algum magistrado nosso contemporâneo, apesar dos séculos que os separam? Qual advogado, numa carreira longa, jamais esbarrou no iudex solutus, naquele juiz delegado da jurisdição real absolutista, e por isso mesmo tão arbitrariamente soberano em suas decisões, tão desvinculado da lei quanto o próprio monarca legibus solutus? E o inquisidor, aquele juiz que participou ativamente das investigações e até mesmo da formatação da acusação, e cujo ódio ao herege ou à bruxa turva-lhe a visão ao ponto de não perceber que em todos os casos ele está na verdade julgando a si mesmo? Entre as hipertensões que foram bater à CAARJ, quantas não se originaram do juiz positivista, do juiz bouche de la loi, que no marco da Exegese pretende resolver conflitos sociais valendo-se da gramática? E, na volta do pêndulo, com o juiz do direito livre, este nefelibata cordial que pretende transformar o mundo com sentenças reformadas, quantos hipertensos a mais na porta da CAARJ? Encontraríamos muitas outras máscaras, como o asséptico juiz “puro” kelseniano, a mesa mais impecável e organizada do foro, ou o juiz neokantista em cujo gabinete as cortinas estão sempre fechadas para impedir a visão da realidade. Nem há como evocar todos esses estereótipos aqui, nem muito menos como reduzi-los aos personagens dworkianos dos juizes Hércules e Hermes, com suas peculiares visões acerca da significação e do raio de alcance jurídico do material legislativo a partir do qual intervém a judicatura.

                             Penso ser possível, nesses tempos sombrios, uma nova tipologia que, pelo menos no âmbito da justiça criminal, pode ser instaurada, com todos os riscos de algum maniqueísmo, em duas figuras.

                             De um lado, teríamos o juiz Salomão. Fui buscar o nome exatamente no filho de Davi e Bate-Sebá, porque ao investir-se na ampla jurisdição real ele não pediu ao Senhor nem poder nem força, mas sabedoria e prudência para “guardar os estatutos” e ainda um “coração compreensivo para julgar”; e também porque o Senhor rejubilou-se por não ter ele pedido a morte dos inimigos, e aconselhou-o não só a castigar a culpa mas também a justificar o inocente. Na sentença das duas prostitutas que disputavam a criança, para além do emprego indiciário do amor materno está a falta de qualquer olhar punitivo sobre a infeliz que, tendo perdido acidental e tragicamente, quando dormiu sobre ele, o próprio filho, procura insensatamente remediar a dor que a consome ressuscitando-o num bebê alheio. Ao contrário dos âncoras da TV que rancorosamente noticiam as não raras repetições dessa tragédia, o sábio juiz Salomão não quis castigar alguém já tão castigada: ou os sistemas penais porventura lograram inventar alguma pena mais cruel do que a perda de um filho? O juiz Salomão é hoje o guardião inexpugnável das garantias do acusado: ele “guarda os estatutos”. Sua principal e insubstituível tarefa é impedir o exercício inconstitucional, ilegal ou irracional do poder punitivo. O juiz Salomão conhece os riscos da exposição pública dos casos, e não só se protege a si mesmo deles como opõe-se ao esquartejamento moral do suspeito ou do acusado, este esquartejamento virtual que viria a substituir, em nossos tempos, o esquartejamento corporal dos convictos por lesa-majestade. O juiz Salomão se consideraria indigno das garantias que a Constituição lhe outorgou se, a partir delas, não construísse uma cabal independência do poder econômico, do poder político – inclusive do poder punitivo – e do poder ilegítimo da mídia. É a firmeza do juiz Salomão que impede a ascensão do Estado de polícia, que sempre avança através do sistema penal, das opressões punitivas. Discreto, preparado, de “coração compreensivo” – e pois compassivo com os infortúnios, os vícios, os sofrimentos e as desgraças que constituem a matéria da jurisdição criminal – o juiz Salomão é um pilar frontal do Estado de direito.

                             De outro lado, porém, temos a emergência de outra figura de juiz. Este juiz não se identifica com a função de tutelar as garantias constitucionais e legais do suspeito ou do acusado, mas ao contrário crê que sua função é debilitá-las ao máximo para favorecer a criminalização secundária. Para ele, as garantias constitucionais de que dispõe ornamentam sua autoridade pessoal. Ele acredita na pena e no discurso comprovadamente falso das teorias legitimantes da pena. Frequentemente cristão, esqueceu-se de que Cristo foi condenado e executado por um magistrado bem expedito, cuja rapidez no julgamento e na execução da pena ultrapassaria as melhores expectativas atuais de produtividade do Conselho Nacional de Justiça. Este juiz jamais se convenceu de que exista prova ilícita; nesta locução, entrevê ele uma contraditio in adjecto. Durante a instrução, é difícil perceber se o maior afinco e devotamente na demonstração da hipótese acusatória é dele ou do Ministério Público, a cujo representante jamais negou um só requerimento. Bem diverso é o tratamento que defere aos advogados, e especialmente aos mais humildes. No fundo, para ele a advocacia criminal é uma cumplicidade ex post facto. Esses reality shows judiciários, com o suspeito sendo preso à luz das câmeras e exibido – sabe-se lá com qual autorização constitucional ou legal – pela polícia contam geralmente com sua participação no roteiro. Para obter cópias do procedimento, e poder examinar a base probatória do indiciamento ou da acusação, o advogado enfrentará muitas dificuldades, ao contrário dos jornalistas, que disporão de documentos e gravações inacessíveis aos defensores. A subordinação deste juiz aos anseios da turbamulta midiatizada, sequiosa de humilhações, constrangimentos e quem sabe alguma violência, me levou a designá-lo por juiz Pilatos. Só que, ao contrário de seu patrono histórico, de cuja insensibilidade e arrogância resultou um sacrifício para a redenção da humanidade, o juiz Pilatos representa a perdição do Estado de direito, que por suas mãos sujas de sofrimento punitivo está sendo asfixiado pelo Estado de polícia.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Discurso de Nilo Batista em agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte I






Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista


Excelentíssimo Senhor Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros,
Minhas Colegas e meus Colegas Advogados,
Autoridades presentes,
Minhas Senhoras e meus Senhores,




I

                               Este pequeno – tranquilizem-se todos – este pequeno discurso teve um nascimento mais difícil do que o de todas as alegações finais, memoriais ou artigos acadêmicos que escrevi na vida. Os amigos mais próximos sabem que, semialfabetizado digital, continuo a escrever valendo-me de uma caneta bic e de um bloco pautado. Não tenho a conta das folhas amassadas que atirei à cesta de lixo: a gravidez do discurso foi de alto risco, e em muitas ocasiões perguntei-me se chegaria ela a termo. Ao invés do desejo por comidas exóticas, instalava-se em mim um estranho sentimento, uma espécie de inveja da posição confortável de nosso generoso Colega Carlos Eduardo Bosísio. Sim, das entranhas convulsas provinha a convicção de que elogiar – mesmo quando o objeto dos encômios definitivamente os não mereça – elogiar é muito mais fácil do que agradecer. Muito mais fácil. Recordemo-nos da desenvoltura com que Erasmo elogiou a loucura, sem deixar de nos espicaçar nela incluindo os jurisconsultos que segundo ele “amontoam glosas sobre glosas, citações sobre citações” e ainda “julgam-se os primeiros sábios do mundo”... E o que pensar de Calamandrei, que lepidamente conseguiu elogiar todos os juízes, todos eles, até aquele que dorme durante a sustentação, no qual descobriu prodigiosamente a virtude da discreção por deixá-lo “à vontade para discorrer sozinho, comigo mesmo, quando meu discurso já não o interessar”...

                               Foi essa descoberta, de que elogiar é muito mais fácil do que agradecer, que finalmente precipitou o parto, ou melhor a cesariana, já que na confusão puerperal prevaleceram os meios cirúrgicos artificiais sobre os procedimentos naturais na vinda ao mundo do discurso. É certo que devo agradecer, e faço-o – contrita e sinceramente – a nosso Presidente, o ilustre advogado e professor Fernando Fragoso, e a cada um dos notáveis juristas que integram o Conselho Superior do Instituto dos Advogados Brasileiros pela honra imerecida com que me distinguiram, outorgando-me a venerável medalha Teixeira de Freitas. Na pessoa de minha amada companheira Verinha concentro todo o agradecimento da ordem dos afetos, no amplo arco que vai de nossos pais que já partiram aos netos que começam a alegrar-nos, passando pelos queridos filhos que nosso amor reuniu e criou. É certo ainda que devo agradecer aos mestres de nossa profissão cujas lições tive o privilégio de haurir, e nas saudades de Evandro Lins e Silva, Heleno Fragoso e Humberto Teles sintetizo minha gratidão a todos os advogados criminais com quem compartilhei alguma vez as tensões na apuração dos votos de um quesito decisivo no júri, e especialmente a meus diletos companheiros de escritório, de ontem e de hoje. Devo um agradecimento especial a Leonel Brizola, que me revelou a natureza política das opressões punitivas. Enfim, é certo que tenho muito a agradecer.

                               Mas não é menos certo que devo interpretar essa distinção olhando não para qualquer eventual merecimento pessoal, mas sim para a crise que o Estado de direito vive entre nós, acometido pelo Estado de polícia através de seus meios prediletos, as agências do sistema penal, e para o papel exercido nesta crise pela advocacia criminal. Recair a distinção na pessoa de um advogado criminal na atual conjuntura foi um ato firme e eloquente da superior administração de nosso Instituto na afirmação das franquias, das prerrogativas e das insubstituíveis funções da advocacia criminal no Estado de direito.

                               A compreensão do sentido real da homenagem dessa noite me permitiu, finalmente, escrever o discurso, o qual, tendo se iniciado como agradecimento, pode prosseguir – superada assim a inveja do Bosisio – como um elogio da advocacia criminal exercida em tempos paradoxalmente sombrios.


II

                               Tempos paradoxalmente sombrios, foi dito acima, e cabe expor tal paradoxo.

                               Todos sabemos que em 1964 a ordem constitucional foi rompida por um golpe oligárquico-militar, instalando-se um Estado de polícia cuja superação formal somente ocorreria com a Constituição de 1988. Na fase mais crítica dessa ditadura, aquela que vai da edição do Ato Institucional nº 5 até a chamada “abertura”, as violações a direitos humanos fundamentais e às mais elementares garantias individuais sofridas pelos suspeitos, indiciados ou acusados de crimes contra a segurança nacional encontraram na advocacia criminal repulsa, denúncia e uma frustrante busca de proteção legal. Muitos assassinatos, muita tortura e muitos desaparecimentos não eram noticiados nos jornais, sob censura do governo. A voz da advocacia criminal não ecoava, não ultrapassava os cancelos das Auditorias da Justiça Militar. O habeas-corpus, suspenso pelo AI-5, convertera-se numa dramática pescaria em águas turvas, mediante a qual procurava-se saber se o detido ainda vivia: caso as informações prestadas pelas autoridades do subsistema penal DOPS/DOI-CODI fossem negativas, quer dizer, caso a detenção (atestada por companheiros do detido) fosse negada, o paciente tinha sido executado ou não resistira à tortura. Acessar os autos de Inquéritos Policiais Militares era tarefa em muitos casos impossível, sob a alegação de um sigilo que envolveria a segurança do Estado. Manter contacto pessoal e reservado com o cliente era, na fase investigatória, algo inalcançável, e durante o processo algo muito racionado. Embora na Justiça militar, destacadamente no Superior Tribunal, os advogados não fossem discriminados, nos aparelhos repressivos geravam-se preconceitos que chegariam até mesmo à breve prisão de alguns dos mais destacados, como se deu com Augusto Sussekind, com George Tavares e com o pai de nosso Presidente, o Professor Heleno Fragoso. Nunca me esquecerei da firmeza com a qual o batonnier Ribeiro de Castro reclamou ao então Comando do Iº Exército a soltura dos advogados.

                               Transportemo-nos para os dias de hoje, e neste vôo de quatro décadas enfatizemos o ano de 1988, que simbolizaria, na promulgação da Constituição da República, a superação histórica do Estado de polícia e a implantação do Estado de direito.

                               Temos entre os presentes muitos homenageados, porque a medalha Teixeira de Freitas foi hoje concedida à advocacia criminal, e um fragmento dela fulge no peito de cada criminalista. Esta especialidade profissional, quando exercida por certo período, dota o advogado – como observei há tempos – de uma antena muito sensível, pelo permanente confronto com o poder punitivo. A advocacia criminal se manifesta quase sempre – ressalvadas atuações específicas e minoritárias, a exemplo da assistência de acusação – como contrapoder, e essa praxis nos adestra para a percepção antecipada de restrições a direitos e de flexibilização de garantias. Em suma, os advogados criminais por vezes conseguimos, como os meteorologistas, adivinhar a borrasca de amanhã pelos ventos de hoje.

                               Gostaria de lançar algumas perguntas a meus Colegas criminalistas.

                               Ocorrem frequentemente, hoje, em nosso país, violações a direitos humanos fundamentais?

                               Suspeitos, indiciados e acusados têm hoje, de modo geral, suas garantias individuais preservadas? Caso alguma dessas garantias lhes for sonegada, obtem-se hoje prestamente proteção legal, com sua imediata restauração?

                               “Dois terroristas foram mortos pela polícia ontem” – eis uma pequena notícia que se estampava por vezes nos jornais censurados do início da década de setenta. Porventura na imprensa livre de hoje se poderia ler algo similar, a exemplo de “dois traficantes foram mortos pela polícia ontem”? Aqui, a única resposta correta seria: todo dia.

                               A voz da advocacia criminal dispõe hoje de alguma ressonância? Ou, como já foi registrado pela criminologia da comunicação, a imprensa só se interessa e divulga versões acusatórias, salvo quando tem a oportunidade de ridicularizar o argumento canhestro de algum Colega inexperiente ou inábil?

                               Hoje, em tempos de intensa punitividade, observa-se nos tribunais tendência a dilargar ou a restringir o alcance do habeas-corpus?

                               Acessar hoje os autos de certos inquéritos ou mesmo de certas medidas liminares é porventura mais fácil do que era acessar os autos dos Inquéritos Policiais Militares?

                               A entrevista pessoal e reservada, este ponto de partida indeclinável do relacionamento profissional, esta condição impostergável do aconselhamento advocatício, realiza-se hoje sem maiores obstáculos?

                               O advogado criminal é hoje compreendido como elemento “indispensável à administração da Justiça”, tal qual preconiza a Constituição da República (art. 133 CR), ou é preconceituosamente visto com suspeição, como uma espécie de cúmplice ex post facto do delito?

                               O advogado é hoje “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão” (art. 133 CR), ou é frequentemente criminalizado, aqui pela linguagem enérgica – que, enquanto aderida à discussão da causa, deveria ancorar-se na libertas convinciandi (art. 142, inc. I CP) –, ali pelo desacato – sem fundamentação convincente expurgado dos “limites da lei” pela Corte Suprema –, acolá pelo autoritário tipo legal da desobediência, mais adiante sob outros pretextos?

         A resposta a todas essas perguntas resulta num diagnóstico surpreendente e preocupante, cujo enunciado se pode retardar formulando outra questão: o sistema penal brasileiro da redemocratização será tão ou mais autoritário do que foi o subsistema penal DOPS/DOI-CODI durante a ditadura?