terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL





CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL

SENTENÇA DE 24 DE NOVEMBRO DE 2010
 
 

325. Portanto,


A CORTE

DECIDE,

por unanimidade:

1. Admitir parcialmente a exceção preliminar de falta de competência temporal interposta pelo Estado, em conformidade com os parágrafos 15 a 19 da presente Sentença.

114

2. Rejeitar as demais exceções preliminares interpostas pelo Estado, nos termos dos parágrafos 26 a 31, 38 a 42 e 46 a 49 da presente Sentença.

DECLARA,

por unanimidade, que:

3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.

5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.

6. O Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 212, 213 e 225 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 196 a 225 desta mesma decisão.

7. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 243 e 244 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 235 a 244 desta mesma decisão.


Trecho da sentença e declaração de voto:
23. Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente
pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Quando a ação policial perde a legitimidade - Carta Capital



Quando a ação policial perde a legitimidade - Carta Capital*


Quando a ação policial perde a legitimidade


Ricardo Carvalho


2 de dezembro de 2010 às 10:39h

Coordenador da Associação Juízes para a Democracia afirma que as denúncias de abuso de policiais nas operações dos morros cariocas representam uma crise de legalidade existente no Brasil

Desde o início da semana passada, o Rio de Janeiro vive uma situação de guerra contra o tráfico. A ação policial, que contou com o suporte das Forças Armadas, resultou na invasão da comunidade Vila Cruzeiro e, posteriormente, do Complexo do Alemão. Nos últimos dias, entretanto, surgiu na mídia uma série de denúncias por parte de moradores de abusos realizados pelas forças policiais. Entre as reclamações, destruição de eletrodomésticos, desaparecimento de dinheiro e outros bens e invasão de domicílios (leia Moradores acusam policias de abuso no Alemão).

O Conselheiro e Coordenador do Núcleo do Rio de Janeiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Rubens Casara, vê as reclamações de abuso policial com preocupação e afirma que demonstram uma crise de legalidade. Casara defende que a violação de preceitos da constituição pela polícia é incompatível com o regime democrático. “Agir dessa maneira significa duas opções:ou rasgamos a Constituição, ou acabamos com a hipocrisia e admitimos que a democracia não é para todos”.


Confira a entrevista.

CartaCapital: Como a AJD se posiciona em relação às notícias de abuso policial?

Rubens Casara: As notícias que nos chegam são encaradas com muita preocupação, porque demonstram sintomas de uma crise de legalidade. Na tentativa de combater aqueles que violam a lei, o próprio estado a está violando. Assim, a atuação estatal perde qualquer legitimidade. O que está por trás disso, mais do que fatos isolados, é um grave problema de estrutura e de valores daqueles órgãos encarregados da execução penal. O problema não é um ou outro policial que está abusando, mas sim uma estrutura leva a esse tipo de arbítrio.


CC: Você considera que a população em geral está justificando a ação do Estado?

RC: Parece-me que a sociedade brasileira, e até as vítimas da opressão estatal, se acostumaram com o autoritarismo. E essa é uma herança maldita dos tempos da ditadura, período não tão distante. As pessoas confundem a presença da autoridade com a prática de atos autoritários. Então causa muita surpresa e uma certa perplexidade a reação entusiasmada da grande maioria da população com esse tipo de ação. Não com o combate à criminalidade, que me parece sempre salutar, mas com a aceitação de que para isso se violem as leis. As notícias que chegam são de que estão invadindo casas, prendendo pessoas para averiguação e usando uma série de atos completamente desassociados do projeto constitucional. Quando a sociedade naturaliza o abuso e acaba dando ar de legitimação a esse abuso, há um grande problema. A sociedade acaba dando sinais de que ainda não conseguiu consolidar uma cultura democrática.


CC: Essas violações no Rio de Janeiro podem representar um retrocesso no âmbito dos direitos sociais?

RC: Com certeza representam um retrocesso e são sintomas de um autoritarismo incompatível com o regime democrático. Queremos agir da maneira como a polícia, segundo as denúncias, está operando? Tudo bem, mas primeiro rasgamos a Constituição e deixamos de viver em uma democracia. Esse é o preço a pagar pelo desrespeito aos direitos fundamentais. Ou então paramos com a hipocrisia e afirmamos que a democracia é para poucos, para os que podem ter os direitos fundamentais preservados.


CC: Você considera a ação policial, da maneira como foi realizada, efetiva?

RC: Não há como supor ingenuamente que a partir dessa ação o tráfico de drogas desapareça. Ou mesmo que as pessoas, que formam um verdadeiro exército de indivíduos que não interessam à sociedade de consumo e que não estão inseridas no mercado de trabalho, vão começar a sobreviver de maneira lícita. Isso é ilusório. Um exemplo: arma não cresce dentro da comunidade. A droga não é plantada nem refinada ali. Será que atos de inteligência que impedissem a droga ou a arma de entrar não seriam mais efetivos e de acordo com a Constituição? Esses últimos atos policiais me pareceram, literalmente, um espetáculo para inglês ver. Além de demonstrar a presença do estado e reafirmar valores. Só que são valores reafirmados a partir de práticas que desconsideram a constituição, o que desde logo os deslegitimam.


CC: De que maneira você enxerga o posicionamento da mídia na cobertura da ação policial?

RC: A leitura que nós estamos fazendo é que uma parcela considerável da mídia, principalmente da chamada grande mídia, trabalha a partir da estética da Disney, do bem contra o mal. Qualquer acontecimento ou conduta é um fato social muito mais complexo e que não pode ser reduzido da maneira como está sendo pelos meios de comunicação. Essa estética Disney, como se a pessoa acusada de tráfico fosse a encarnação do demônio e os agentes do estado, a esperança da realização dos direitos, é simplista e descontextualizada. Nós esperávamos da mídia uma abordagem crítica no sentido de tentar ver o que se esconde por trás dessa atuação policial, o que se esconde por trás também da questão das drogas ilícitas e das organizações criminosas. O que nós vemos no Rio de Janeiro é a ponta de um iceberg de um grave problema social que não está sendo efetivamente combatido.

CC: Quais seriam esses problemas sociais?

RC: É a substituição do estado social, de políticas sérias de saúde e educação, pelo estado penal. Estamos instrumentalizando uma indústria do direito abstrato de segurança com consequências graves, como o surgimento de grupos paramilitares, em detrimento do direito à vida, à integridade física e à saúde.
 
*Extraído do blog do professor e magistrado Alexandre Morais da Rosa.
Obs. Assino embaixo de tudo o que o jurista Rubens Casara declarou nesta entrevista.
Não expressaria melhor tal opinião. Talvez me valesse de um título: quando a metáfora da guerra deu lugar à guerra em si.
Geraldo Prado