sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Discurso de Nilo Batista em agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte II






Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista



III

                             O olhar acima remetido ao sistema penal de hoje poderia ser acoimado de corporativista, já que lançado da janela da advocacia criminal. Experimentemos, portanto, outra angulação.

                             Em 1988, tínhamos uma população carcerária em torno de 100.000 internos. Naquele ano, a Assembléia Nacional Constituinte promulgou a Constituição, declinando como primeiro objetivo fundamental da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I CR).

                             De lá para cá, vinte e três anos se passaram, e é razoável supor que as autoridades constituídas tenham trabalhado intensamente na construção dessa “sociedade livre”.

                             Temos hoje aproximadamente 500.000 internos e 700.000 pessoas sob controle de agências do sistema penal (suspensões condicionais do processo ou da pena, livramento condicional, penas restritivas de direitos etc), totalizando 1.200.000 brasileiros criminalizados.

                             Ou seja, para construir uma “sociedade livre” prendemos – seja com as grades da penitenciária, seja com a tornozeleira eletrônica, seja com a supervisão periódica de uma agência do sistema penal – prendemos doze vezes mais gente do que encontráramos por ocasião do marco zero da redemocratização.

                             Para quem acredita que a privação de liberdade ressocializa, talvez não pareça estranho construir uma “sociedade livre” prendendo massivamente.

                             Contornemos a prudente distância as interpretações deste inchaço no encarceramento produzido após a chamada “Constituição cidadã”, especialmente aquelas interpretações que remetem à transição do capitalismo industrial para o capitalismo transnacional vídeo-financeiro, às transformações macroeconômicas pelas quais já passamos e, tudo indica, ainda estamos passando. Todos temos nossas interpretações, divergentes e por vezes antagônicas: a minha é bastante conhecida, e nem tive muito como ser discreto a seu respeito. Contudo, não precisamos de interpretações quando há unanimidade acerca do fato escandaloso de estarmos vivendo o maior encarceramento de nossa história. Compartilhamos essa vergonha, e podemos perfeitamente dispensar-nos de divergir sobre suas origens, já que estamos de acordo quanto a sua presença.


IV

                             A chamada militarização da segurança pública constitui um sintoma muito preocupante. O envolvimento das Forças Armadas em tarefas policiais é algo corrosivo para os rígidos padrões da organização militar e simultaneamente dinamizador de abusos e violências para a instituição policial.

                             Forças Armadas bem adestradas e equipadas constituem o pressuposto essencial de nossa soberania. Destinou-as a Constituição “à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais”; seu emprego supletivo, por iniciativa dos poderes da República, na manutenção “da lei e da ordem” (art. 142 CR) deveria restringir-se às hipóteses de Estado de Defesa e Estado de Sítio. Aliás, apenas lei complementar poderia dispor sobre o emprego das Forças Armadas (art. 142, § 1º CR), e nunca um mero decreto ou mesmo uma lei ordinária. Vulgarizou-se todavia a participação militar em conflitos civis criminalizados. Conheci de perto o início dessa vulgarização, sobre o qual pretendo um dia discorrer. O que ora desejo ressaltar é que existiu um projeto, oriundo do hemisfério norte, de converter as Forças Armadas latinoamericanas em milícias lançadas ao retumbante fracasso da chamada guerra contra as drogas, e que tal projeto – intencionalmente ou não – resulta numa deterioração dos contingentes assim empregados (policização). Quem tiver alguma dúvida, olhe para a experiência do México.

                             A aproximação entre o poder militar e o poder punitivo tem efeitos desastrosos para o Estado de direito. As Forças Armadas são para a guerra assim como a instituição policial é para a lei. O militar é adestrado para o inimigo, o policial para o cidadão. A guerra se resolve pela força, a criminalização pelo direito. Na estrutura militar, a obediência integra a legalidade; na estrutura policial, a legalidade é condição prévia da obediência. Não estamos diante de adestramentos similares ou assimiláveis; pelo contrário, são eles bem distintos, e dirigidos a situações também muito distintas. Olhem para o século XX, o século dos genocídios: perto de cada um deles há sempre uma polícia completamente militarizada ou Forças Armadas exercendo funções policiais. As fotos dos choques-de-ordem nazistas não serão suficientemente didáticas? O sistema de responsabilização é também radicalmente diferente. Não há ordens vinculantes para o policial, adstrito a aferir a legalidade de todas e de cada uma delas antes de executá-las; num teatro de guerra, tal rotina desaguaria em cômica derrota.

                             Entre os paradoxos dos tempos sombrios que vivemos está o fato de ter tocado aos governos civis posteriores à Constituição a militarização da segurança pública. Sim, com exceção do subsistema penal DOPS-DOI/CODI, que se ocupava estritamente dos então chamados crimes contra a segurança nacional, não passou pela cabeça de nenhum general alçado à Presidência da República expandir competências militares na direção da segurança pública. Talvez latejassem em suas consciências as enérgicas palavras com as quais o Marechal Deodoro da Fonseca, em 1887, na condição de presidente do Clube Militar, pleiteou da Princesa Isabel, no exercício da Regência, que o Exército não fosse empregado naquilo que chamou de “papel menos decoroso e menos digno”, referindo-se à captura de escravos foragidos. Nossas Forças Armadas não podem converter-se numa espécie de capitão-do-mato dos quilombos urbanos que o neoliberalismo agigantou.

                             Para encerrar o rol dos paradoxos, miremos este estranho personagem glorificado pela mídia e aplaudido em cena aberta, o intimorato Capitão Nascimento. Trata-se, sem dúvida, de um torturador; um assumido e convicto torturador. Como compreender que durante a ditadura o torturador fosse olhado – e assim continua a ser olhado hoje – como um vilão, como uma criatura degradada e repulsiva, e hoje um torturador seja uma espécie de herói nacional?


V

                             Voltemos nossos olhos para os juízes. Eu gostaria de poder, como Calamandrei, elogiá-los a todos, inclusive ao que dormita durante a sustentação (e não seria difícil ressaltar-lhe a elevação espiritual, que troca o mesquinho debate sobre interesses terrenos pela transcendência dos sonhos). Temo, contudo, que esses tempos sombrios tenham produzido uma nova espécie de juiz que talvez nem Calamandrei conseguisse elogiar.

                             A construção da persona judicial no ocidente constitui um longo e inconcluso percurso. Muitos traços de estereótipos judiciais históricos subsistem na cultura forense, e às vezes irrompem, quais fantasmas, nas salas de audiência republicanas. Aquele iudex perfectus que o direito canônico desenhou, espelho decaído do Julgador Onipotente, dispensado de toda fundamentação pela fiança de suas virtudes, não se deixa entrever por vezes em algum magistrado nosso contemporâneo, apesar dos séculos que os separam? Qual advogado, numa carreira longa, jamais esbarrou no iudex solutus, naquele juiz delegado da jurisdição real absolutista, e por isso mesmo tão arbitrariamente soberano em suas decisões, tão desvinculado da lei quanto o próprio monarca legibus solutus? E o inquisidor, aquele juiz que participou ativamente das investigações e até mesmo da formatação da acusação, e cujo ódio ao herege ou à bruxa turva-lhe a visão ao ponto de não perceber que em todos os casos ele está na verdade julgando a si mesmo? Entre as hipertensões que foram bater à CAARJ, quantas não se originaram do juiz positivista, do juiz bouche de la loi, que no marco da Exegese pretende resolver conflitos sociais valendo-se da gramática? E, na volta do pêndulo, com o juiz do direito livre, este nefelibata cordial que pretende transformar o mundo com sentenças reformadas, quantos hipertensos a mais na porta da CAARJ? Encontraríamos muitas outras máscaras, como o asséptico juiz “puro” kelseniano, a mesa mais impecável e organizada do foro, ou o juiz neokantista em cujo gabinete as cortinas estão sempre fechadas para impedir a visão da realidade. Nem há como evocar todos esses estereótipos aqui, nem muito menos como reduzi-los aos personagens dworkianos dos juizes Hércules e Hermes, com suas peculiares visões acerca da significação e do raio de alcance jurídico do material legislativo a partir do qual intervém a judicatura.

                             Penso ser possível, nesses tempos sombrios, uma nova tipologia que, pelo menos no âmbito da justiça criminal, pode ser instaurada, com todos os riscos de algum maniqueísmo, em duas figuras.

                             De um lado, teríamos o juiz Salomão. Fui buscar o nome exatamente no filho de Davi e Bate-Sebá, porque ao investir-se na ampla jurisdição real ele não pediu ao Senhor nem poder nem força, mas sabedoria e prudência para “guardar os estatutos” e ainda um “coração compreensivo para julgar”; e também porque o Senhor rejubilou-se por não ter ele pedido a morte dos inimigos, e aconselhou-o não só a castigar a culpa mas também a justificar o inocente. Na sentença das duas prostitutas que disputavam a criança, para além do emprego indiciário do amor materno está a falta de qualquer olhar punitivo sobre a infeliz que, tendo perdido acidental e tragicamente, quando dormiu sobre ele, o próprio filho, procura insensatamente remediar a dor que a consome ressuscitando-o num bebê alheio. Ao contrário dos âncoras da TV que rancorosamente noticiam as não raras repetições dessa tragédia, o sábio juiz Salomão não quis castigar alguém já tão castigada: ou os sistemas penais porventura lograram inventar alguma pena mais cruel do que a perda de um filho? O juiz Salomão é hoje o guardião inexpugnável das garantias do acusado: ele “guarda os estatutos”. Sua principal e insubstituível tarefa é impedir o exercício inconstitucional, ilegal ou irracional do poder punitivo. O juiz Salomão conhece os riscos da exposição pública dos casos, e não só se protege a si mesmo deles como opõe-se ao esquartejamento moral do suspeito ou do acusado, este esquartejamento virtual que viria a substituir, em nossos tempos, o esquartejamento corporal dos convictos por lesa-majestade. O juiz Salomão se consideraria indigno das garantias que a Constituição lhe outorgou se, a partir delas, não construísse uma cabal independência do poder econômico, do poder político – inclusive do poder punitivo – e do poder ilegítimo da mídia. É a firmeza do juiz Salomão que impede a ascensão do Estado de polícia, que sempre avança através do sistema penal, das opressões punitivas. Discreto, preparado, de “coração compreensivo” – e pois compassivo com os infortúnios, os vícios, os sofrimentos e as desgraças que constituem a matéria da jurisdição criminal – o juiz Salomão é um pilar frontal do Estado de direito.

                             De outro lado, porém, temos a emergência de outra figura de juiz. Este juiz não se identifica com a função de tutelar as garantias constitucionais e legais do suspeito ou do acusado, mas ao contrário crê que sua função é debilitá-las ao máximo para favorecer a criminalização secundária. Para ele, as garantias constitucionais de que dispõe ornamentam sua autoridade pessoal. Ele acredita na pena e no discurso comprovadamente falso das teorias legitimantes da pena. Frequentemente cristão, esqueceu-se de que Cristo foi condenado e executado por um magistrado bem expedito, cuja rapidez no julgamento e na execução da pena ultrapassaria as melhores expectativas atuais de produtividade do Conselho Nacional de Justiça. Este juiz jamais se convenceu de que exista prova ilícita; nesta locução, entrevê ele uma contraditio in adjecto. Durante a instrução, é difícil perceber se o maior afinco e devotamente na demonstração da hipótese acusatória é dele ou do Ministério Público, a cujo representante jamais negou um só requerimento. Bem diverso é o tratamento que defere aos advogados, e especialmente aos mais humildes. No fundo, para ele a advocacia criminal é uma cumplicidade ex post facto. Esses reality shows judiciários, com o suspeito sendo preso à luz das câmeras e exibido – sabe-se lá com qual autorização constitucional ou legal – pela polícia contam geralmente com sua participação no roteiro. Para obter cópias do procedimento, e poder examinar a base probatória do indiciamento ou da acusação, o advogado enfrentará muitas dificuldades, ao contrário dos jornalistas, que disporão de documentos e gravações inacessíveis aos defensores. A subordinação deste juiz aos anseios da turbamulta midiatizada, sequiosa de humilhações, constrangimentos e quem sabe alguma violência, me levou a designá-lo por juiz Pilatos. Só que, ao contrário de seu patrono histórico, de cuja insensibilidade e arrogância resultou um sacrifício para a redenção da humanidade, o juiz Pilatos representa a perdição do Estado de direito, que por suas mãos sujas de sofrimento punitivo está sendo asfixiado pelo Estado de polícia.


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