quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Discurso de Nilo Batista em agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte I






Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista


Excelentíssimo Senhor Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros,
Minhas Colegas e meus Colegas Advogados,
Autoridades presentes,
Minhas Senhoras e meus Senhores,




I

                               Este pequeno – tranquilizem-se todos – este pequeno discurso teve um nascimento mais difícil do que o de todas as alegações finais, memoriais ou artigos acadêmicos que escrevi na vida. Os amigos mais próximos sabem que, semialfabetizado digital, continuo a escrever valendo-me de uma caneta bic e de um bloco pautado. Não tenho a conta das folhas amassadas que atirei à cesta de lixo: a gravidez do discurso foi de alto risco, e em muitas ocasiões perguntei-me se chegaria ela a termo. Ao invés do desejo por comidas exóticas, instalava-se em mim um estranho sentimento, uma espécie de inveja da posição confortável de nosso generoso Colega Carlos Eduardo Bosísio. Sim, das entranhas convulsas provinha a convicção de que elogiar – mesmo quando o objeto dos encômios definitivamente os não mereça – elogiar é muito mais fácil do que agradecer. Muito mais fácil. Recordemo-nos da desenvoltura com que Erasmo elogiou a loucura, sem deixar de nos espicaçar nela incluindo os jurisconsultos que segundo ele “amontoam glosas sobre glosas, citações sobre citações” e ainda “julgam-se os primeiros sábios do mundo”... E o que pensar de Calamandrei, que lepidamente conseguiu elogiar todos os juízes, todos eles, até aquele que dorme durante a sustentação, no qual descobriu prodigiosamente a virtude da discreção por deixá-lo “à vontade para discorrer sozinho, comigo mesmo, quando meu discurso já não o interessar”...

                               Foi essa descoberta, de que elogiar é muito mais fácil do que agradecer, que finalmente precipitou o parto, ou melhor a cesariana, já que na confusão puerperal prevaleceram os meios cirúrgicos artificiais sobre os procedimentos naturais na vinda ao mundo do discurso. É certo que devo agradecer, e faço-o – contrita e sinceramente – a nosso Presidente, o ilustre advogado e professor Fernando Fragoso, e a cada um dos notáveis juristas que integram o Conselho Superior do Instituto dos Advogados Brasileiros pela honra imerecida com que me distinguiram, outorgando-me a venerável medalha Teixeira de Freitas. Na pessoa de minha amada companheira Verinha concentro todo o agradecimento da ordem dos afetos, no amplo arco que vai de nossos pais que já partiram aos netos que começam a alegrar-nos, passando pelos queridos filhos que nosso amor reuniu e criou. É certo ainda que devo agradecer aos mestres de nossa profissão cujas lições tive o privilégio de haurir, e nas saudades de Evandro Lins e Silva, Heleno Fragoso e Humberto Teles sintetizo minha gratidão a todos os advogados criminais com quem compartilhei alguma vez as tensões na apuração dos votos de um quesito decisivo no júri, e especialmente a meus diletos companheiros de escritório, de ontem e de hoje. Devo um agradecimento especial a Leonel Brizola, que me revelou a natureza política das opressões punitivas. Enfim, é certo que tenho muito a agradecer.

                               Mas não é menos certo que devo interpretar essa distinção olhando não para qualquer eventual merecimento pessoal, mas sim para a crise que o Estado de direito vive entre nós, acometido pelo Estado de polícia através de seus meios prediletos, as agências do sistema penal, e para o papel exercido nesta crise pela advocacia criminal. Recair a distinção na pessoa de um advogado criminal na atual conjuntura foi um ato firme e eloquente da superior administração de nosso Instituto na afirmação das franquias, das prerrogativas e das insubstituíveis funções da advocacia criminal no Estado de direito.

                               A compreensão do sentido real da homenagem dessa noite me permitiu, finalmente, escrever o discurso, o qual, tendo se iniciado como agradecimento, pode prosseguir – superada assim a inveja do Bosisio – como um elogio da advocacia criminal exercida em tempos paradoxalmente sombrios.


II

                               Tempos paradoxalmente sombrios, foi dito acima, e cabe expor tal paradoxo.

                               Todos sabemos que em 1964 a ordem constitucional foi rompida por um golpe oligárquico-militar, instalando-se um Estado de polícia cuja superação formal somente ocorreria com a Constituição de 1988. Na fase mais crítica dessa ditadura, aquela que vai da edição do Ato Institucional nº 5 até a chamada “abertura”, as violações a direitos humanos fundamentais e às mais elementares garantias individuais sofridas pelos suspeitos, indiciados ou acusados de crimes contra a segurança nacional encontraram na advocacia criminal repulsa, denúncia e uma frustrante busca de proteção legal. Muitos assassinatos, muita tortura e muitos desaparecimentos não eram noticiados nos jornais, sob censura do governo. A voz da advocacia criminal não ecoava, não ultrapassava os cancelos das Auditorias da Justiça Militar. O habeas-corpus, suspenso pelo AI-5, convertera-se numa dramática pescaria em águas turvas, mediante a qual procurava-se saber se o detido ainda vivia: caso as informações prestadas pelas autoridades do subsistema penal DOPS/DOI-CODI fossem negativas, quer dizer, caso a detenção (atestada por companheiros do detido) fosse negada, o paciente tinha sido executado ou não resistira à tortura. Acessar os autos de Inquéritos Policiais Militares era tarefa em muitos casos impossível, sob a alegação de um sigilo que envolveria a segurança do Estado. Manter contacto pessoal e reservado com o cliente era, na fase investigatória, algo inalcançável, e durante o processo algo muito racionado. Embora na Justiça militar, destacadamente no Superior Tribunal, os advogados não fossem discriminados, nos aparelhos repressivos geravam-se preconceitos que chegariam até mesmo à breve prisão de alguns dos mais destacados, como se deu com Augusto Sussekind, com George Tavares e com o pai de nosso Presidente, o Professor Heleno Fragoso. Nunca me esquecerei da firmeza com a qual o batonnier Ribeiro de Castro reclamou ao então Comando do Iº Exército a soltura dos advogados.

                               Transportemo-nos para os dias de hoje, e neste vôo de quatro décadas enfatizemos o ano de 1988, que simbolizaria, na promulgação da Constituição da República, a superação histórica do Estado de polícia e a implantação do Estado de direito.

                               Temos entre os presentes muitos homenageados, porque a medalha Teixeira de Freitas foi hoje concedida à advocacia criminal, e um fragmento dela fulge no peito de cada criminalista. Esta especialidade profissional, quando exercida por certo período, dota o advogado – como observei há tempos – de uma antena muito sensível, pelo permanente confronto com o poder punitivo. A advocacia criminal se manifesta quase sempre – ressalvadas atuações específicas e minoritárias, a exemplo da assistência de acusação – como contrapoder, e essa praxis nos adestra para a percepção antecipada de restrições a direitos e de flexibilização de garantias. Em suma, os advogados criminais por vezes conseguimos, como os meteorologistas, adivinhar a borrasca de amanhã pelos ventos de hoje.

                               Gostaria de lançar algumas perguntas a meus Colegas criminalistas.

                               Ocorrem frequentemente, hoje, em nosso país, violações a direitos humanos fundamentais?

                               Suspeitos, indiciados e acusados têm hoje, de modo geral, suas garantias individuais preservadas? Caso alguma dessas garantias lhes for sonegada, obtem-se hoje prestamente proteção legal, com sua imediata restauração?

                               “Dois terroristas foram mortos pela polícia ontem” – eis uma pequena notícia que se estampava por vezes nos jornais censurados do início da década de setenta. Porventura na imprensa livre de hoje se poderia ler algo similar, a exemplo de “dois traficantes foram mortos pela polícia ontem”? Aqui, a única resposta correta seria: todo dia.

                               A voz da advocacia criminal dispõe hoje de alguma ressonância? Ou, como já foi registrado pela criminologia da comunicação, a imprensa só se interessa e divulga versões acusatórias, salvo quando tem a oportunidade de ridicularizar o argumento canhestro de algum Colega inexperiente ou inábil?

                               Hoje, em tempos de intensa punitividade, observa-se nos tribunais tendência a dilargar ou a restringir o alcance do habeas-corpus?

                               Acessar hoje os autos de certos inquéritos ou mesmo de certas medidas liminares é porventura mais fácil do que era acessar os autos dos Inquéritos Policiais Militares?

                               A entrevista pessoal e reservada, este ponto de partida indeclinável do relacionamento profissional, esta condição impostergável do aconselhamento advocatício, realiza-se hoje sem maiores obstáculos?

                               O advogado criminal é hoje compreendido como elemento “indispensável à administração da Justiça”, tal qual preconiza a Constituição da República (art. 133 CR), ou é preconceituosamente visto com suspeição, como uma espécie de cúmplice ex post facto do delito?

                               O advogado é hoje “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão” (art. 133 CR), ou é frequentemente criminalizado, aqui pela linguagem enérgica – que, enquanto aderida à discussão da causa, deveria ancorar-se na libertas convinciandi (art. 142, inc. I CP) –, ali pelo desacato – sem fundamentação convincente expurgado dos “limites da lei” pela Corte Suprema –, acolá pelo autoritário tipo legal da desobediência, mais adiante sob outros pretextos?

         A resposta a todas essas perguntas resulta num diagnóstico surpreendente e preocupante, cujo enunciado se pode retardar formulando outra questão: o sistema penal brasileiro da redemocratização será tão ou mais autoritário do que foi o subsistema penal DOPS/DOI-CODI durante a ditadura?

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