sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Discurso de Nilo Batista de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas - Instituto dos Advogados Brasileiros - Parte Final





Discurso de agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro de 2011
ao advogado Nilo Batista 


VI

                             Quero rapidamente – tentando efetivar a promessa do discurso breve – pedir a atenção de meus Colegas para a cultura punitiva na qual estamos imersos.

                             A pena se converteu numa espécie de emplastro Braz Cubas para todas as mazelas nacionais; não há um só problema, um só conflito ao qual o Congresso Nacional não queira responder com o emplastro da criminalização primária (ou, quando ela já exista, com um aumento na escala penal ou um endurecimento no regime penitenciário).

                             Aquilo que jamais é enunciado, que permanece como um saber meio herético e meio insurgente, é o fracasso exaustivamente comprovado da pena cominada como modelador da conduta humana e da pena executada como instrumento das utopias ressocializadoras. No campo das ciências sociais o behaviorismo está desacreditado, e muitos autores, como Skinner, duvidavam da eficácia motivadora do castigo; correlatamente, em todas as ocasiões nas quais efeitos preventivos da pena puderam  ser objeto de pesquisa empírica, não foram comprovados. A reincidência penitenciária, cujas oscilações históricas nunca se afastam muito dos 70%, é a melhor demonstração de que a verdadeira obra da sociabilidade carcerária reside na reprodução da identidade infratora. Se impusermos coercitivamente a uma centena de infratores qualquer espécie de restrição de direitos que não envolva privação de liberdade, não sabemos quantos reincidirão; mas se os lançarmos numa penitenciária, sabemos que cerca de setenta reincidirão. Pois apesar dessas constatações, o Congresso Nacional e a mídia (talvez a ordem mais correta fosse a mídia e o Congresso Nacional), secundados por muitos operadores do sistema penal, seguem acreditando que o homem pode ser comportamentalmente manipulado, como o cachorro de Pavlov, e que a penitenciária é um lugar de reconstruir vidas (a despeito de que, em nosso continente, todo preso tenha dez vezes mais possibilidades de matar-se ou de ser morto do que nós).

                             A responsabilidade da mídia para com este quadro é evidente, e por mais bisonhos ou estúpidos que sejam os editoriais acerca do tema, o valor democrático da liberdade de imprensa torna-os intangíveis. Quanto ao noticiário sobre casos criminais, investigações ou processos, em minha opinião a coisa muda de figura. Existem, em países democráticos, muitos modelos restritivos nos quais poderíamos nos inspirar no momento de proceder à regulação deste setor. Muitos tribunais, a começar pela Suprema Corte estadounidense, e inúmeros estudiosos já perceberam os riscos do chamado trial by the media. Estamos aqui no campo de conflito entre o princípio da liberdade de informação e vários outros princípios, situados entre a presunção de inocência e o direito a um julgamento justo. Afirmo desta veneranda tribuna que a licenciosidade informativa, no circo dos “furos” da reportagem policial, na exposição de suspeitos ou acusados, na dignificação dos explicáveis sentimentos de vingança da vítima ou de seus familiares e em tantas outras frentes implica uma perda de qualidade na prestação jurisdicional e resulta frequentemente num linchamento virtual irreversível, mesmo quando sobrevenha uma absolvição. Será isto compatível com um Estado de direito cuja Constituição se comprometeu com a “dignidade da pessoa humana”, e declarou invioláveis “a honra e a imagem das pessoas” (arts. 1º, inc. III e 5º, inc. X)?

                             A cultura punitiva tem seu mais importante núcleo reprodutor na academia, refletindo-se diretamente na teorização jurídica e dela recebendo – na voz frequentemente leviana de certos “especialistas” – oportuna retroalimentação. Para ficar num exemplo, pensemos em duas concepções de delito que sempre se antagonizaram: para uma, sua essência estaria na desobediência (na violação da norma); para outra, na ofensa produzida (no dano ou no perigo concretamente realizados). Há uma relação histórica incontestável entre a primeira concepção e o Estado de polícia; não por coincidência, o direito penal nazista identificou-se e foi identificado como direito penal da vontade, e seus penalistas entreviam em cada conduta típica exercida uma espécie de traição ao Estado. Está hoje, entre nós, disseminada concepção similar, senão em suas premissas teóricas – que o pudor pode silenciar – certamente nas consequências (criminalização de atos preparatórios, crimes de perigo abstrato, formatação de delitos-obstáculo, rejeição da insignificância, punibilidade omissiva do descumprimento de deveres inúteis etc). Valha-nos como exemplo o parágrafo único do artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro, que para vergonha do penalismo nacional, apregoa praticar omissão de socorro o motorista que “deixar de prestar imediato socorro à vítima (...) ainda que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves” – dois casos, por certo, nos quais se impõe ao sujeito um dever inútil.

                             Não me deterei sobre a metástase da indústria cultural do crime, sobre esses enlatados que expõem a brutalidade da convivência carcerária, a frieza de justiceiros travestidos de policiais e até mesmo de juízes e, claro, a crueldade patológica de delinquentes cuja morte desperta no espectador uma estranha catarse, que a Profa. Verinha Malaguti Batista caracterizou como “adesão subjetiva à barbárie”.


                             Também não me deterei sobre a criminalização da vida pública, tão útil para consumar o exílio do debate político, e tão representativa da centralidade que a questão criminal indevidamente adquiriu.


                             Até onde o Estado de direito suportará esta centralidade? Até quando o Estado de direito conviverá com os deprimentes espetáculos punitivos que parecem dispor de bem equipadas centrais de produção? Outro dia, alguém no Rio selecionou quarenta mandados de prisão de quarenta processos completamente diferentes, com protagonistas e circunstâncias radicalmente distintas, para comemorar uma data relativa à violência doméstica com a exibição inconstitucional e ilegal de suspeitos, acusados ou condenados. E, há duas semanas atrás, em São Paulo, a Prefeitura e a Polícia Militar se conveniaram para enfrentar ... a gazeta escolar. Sim, isso mesmo, a Polícia vai correr atrás dos estudantes que estão “matando aula”: será que foi esta expressão, matar aula, que levou a prefeitura a reeditar no primeiro grau o que a administração do Estado já fizera na USP? O que falar de mulheres dando à luz algemadas?

                             Nesses tempos sombrios, é como se a pena se transformasse numa divindade, tal a crença em suas propriedades preventivas e expiatórias. Mas, queridos Colegas, olhemos para a história: sempre que um sistema penal se articulou em torno de uma divindade sua destrutividade foi incrementada, como na Inquisição. Por outro lado, sempre que a multidão pediu mais pena, mais e maiores condenações, mais sofrimento punitivo, a irracionalidade dominara: foi assim no nazismo.

                             O que nos espera? O cenário internacional é tenebroso, e caberia pensar, recorrendo a uma categoria política fora de moda, no advento de um imperialismo punitivo, que sob o lema – de cariz policial – da “proteção” é capaz de depor e matar, com ou sem figura de juízo, Chefes de Estado não alinhados, ou mesmo de cometer e comemorar um homicídio a sangue frio, e nem falemos de Guantánamo e do emprego autorizado da tortura.


                             O que nos espera aqui? Até onde o Estado de polícia chegará em sua ascensão constante, já sedimentada num fascismo social cujas marcas estão por toda parte?


VII

                             Na pessoa de um advogado criminal, o Instituto dos Advogados Brasileiros quis este ano homenagear a advocacia criminal.

                             Compartilho com todos os criminalistas brasileiros, dos Colegas aqui presentes aos mais distantes, empenhados todos na mesma luta de preservar o Estado de direito, a medalha recebida. Essa luta, dispersa e capilarizada, é agora mais importante do que nunca. Pouco importa se hoje somos olhados com preconceito e incompreensão. A história, que decanta e ilumina os acontecimentos, reservará para esses lutadores anônimos respeito e gratidão.

                             Senhor Presidente, exímio criminalista, filho e pai de criminalistas, muito obrigado. Aos distinguidos Advogados que integram o Conselho Superior, muito obrigado.

                             Os criminalistas procuraremos ser dignos da Medalha Teixeira de Freitas que hoje recebemos.


                             Muito obrigado.

Nenhum comentário: