quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Clarice Linspector e o Direito Penal

Ontem meus alunos da Faculdade Nacional de Direito formaram-se, em uma belíssima e animada festa, que fez justiça aos novos profissionais da área jurídica.


Com muito orgulho sou o Patrono dessa Turma de 2010.

Abaixo o texto que escrevi em homenagem a eles, com toda a gratidão do mundo!



Clarice Linspector e o Direito Penal



Caros afilhados e afilhadas:

Peço desculpas antecipadamente se corro o sério risco de patinar no lugar comum, na mesmice, ao afirmar que a cerimônia de formatura é um ritual de passagem. Encerra-se um ciclo na vida de vocês e na daqueles que seguiram ao seu lado, durante estes anos de Faculdade, e se inicia uma nova fase, mais árida, talvez menos romântica, o princípio da maturidade.

Nessa hora não há como escapar da imagem do ritual, visão tão cara ao direito, de tal maneira valorizada entre nós, que se tem a impressão de que não há direito sem solenidade. Possivelmente essa é a razão, a ausência de “solenidades”, pela qual o direito construído com o suor dos desafortunados não seja encarado assim, como algo de “Direito” (com D maiúsculo), valores dignos de serem reconhecidos por todos os membros da sociedade com independência dos mais variados fatores que nos desassemelham!

Preferimos os rituais. Mas este específico ritual, a formatura, é também, e principalmente, festa. E é por isso que é muito especial.

É festa de recordação. Eduardo Galeano, filósofo do amor na periferia desse mundo estranho chamado América Latina, lugar onde o “realismo” é “fantástico”, este pedaço de coração partido, como adverte Isabel Allende, chama atenção para as origens. A de recordar está em re = de novo, uma vez mais; e cordis = coração. Recordar é passar uma vez mais pelo coração.

A formatura é o momento da recordação, porque é tempo de encontro, de cruzamento de histórias, transpassadas nos corações.

Encontrar é sempre encontrar o Outro, um movimento pendular, que existe, em realidade, apenas na interação, nas trocas possíveis, desprovidas das hierarquias artificiosas, que são mais barreiras do que pontes.

Estes encontros são verdadeiramente achados, pois para alguns, como para mim, oferecem aos que experimentaram essa mesma emoção de conclusão de um ciclo, a oportunidade de reviver e tantas vezes de reinventar a própria biografia, a partir do ajuntamento de peças que são frações das múltiplas e ricas histórias transversais, semeadas em cinco anos de intensa convivência, nem sempre – e às vezes, até raramente - no espaço que a tradição acadêmica destina às aulas.

A formatura é festa para ser feliz mesmo!

Este foi o meu sentimento desde quando soube da associação do meu nome ao de vocês, inexoravelmente.

Quanta responsabilidade! Quanta honra! E por causa dessa festa, quantas saudades, por que não dizer!

Afinal, em agosto de 1983, dez dias depois do nascimento de minha filha, eu estava experimentando a mesma eufórica aflição, com o mesmo frio na barriga, as mesmas dúvidas e incertezas que até os mais seguros aqui estão sentindo agora.

Está aí algo que a fisiologia não explica: como o frio na barriga de três décadas atrás insiste em percorrer os mesmos caminhos até chegar ao coração, em cada turma que se forma!

Por que quem se forma tem essa sensação desconfortável, de “frio na barriga”? Provavelmente é a falta da tal “bola de cristal”.

Não há como prever o futuro e não há “seguro” algum contra o receio de não termos escolhido a profissão certa, ou aquela que conforta por permitir a união do prazer à satisfação das nossas necessidades, ou ainda, e melhor, a que tem potencial para realizar de forma plena os nossos mais profundos desejos!

Em 1983 não tinha a menor ideia de “onde” estaria em 2011. Ainda que seduzido pelo sonho de lecionar, sequer poderia imaginar que construiria uma carreira no magistério, especialmente na Faculdade Nacional de Direito, verdadeiro delírio no distante início da década de 80 do século passado!

Bem... se a formatura é uma festa, de fato o melhor a fazer é, realmente... delirar. Afinal, ninguém é dono dos búzios.

Festa estranha, com gente esquisita, diria o Eduardo da Mônica!

E nessa festa especular, vale olhar para trás e reviver um pouco da história da FND, a casa que nos acolheu.

No baú das lendas da Nacional achei Clarice Linspector. Mulher em um mundo de homens, judia em um mundo anti-semita, oriunda da modesta escola pública Sylvio Leite, lá da Tijuca, depois de ter estudado em Maceió e Recife, ela ingressa na FND em 17 de fevereiro de 1939.

Ela também teve a sua festa de formatura (tardia) na FND, após a II Guerra Mundial.

O singular, porém, na história de Clarice é que, chegada ao Brasil com meses de idade, em 1920/1, fugindo do massacre de judeus na Rússia, os pogrons, tendo experimentado a miséria absoluta, esta jovem estudante, futuramente uma de nossas maiores escritoras, aceitou o desafio de falar sobre Direito Penal, no primeiro número da Revista A Época, organizada pelos alunos da FND.

Seu artigo sobre o Poder de Punir antecipa em décadas os questiona-mentos da criminologia crítica que soterraram os dogmas positivistas festejados pelas elites nos séculos XIX e XX. Em um universo jurídico masculino, povoado por Nelson Hungria e outros, que percebiam o crime como distorção da personalidade do agente, a jovem aluna da FND disse, com todas as letras, que “o homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele”.

Em outras palavras: três décadas à frente, em relação aos criminólogos ingleses e italianos, a estudante da UFRJ questionou a legitimidade e os fundamentos do que até seus mestres denominavam “direito de punir”!

Ainda hoje há quem acredite e proclame um “direito de punir” e mesmo alguma deformação genética característica dos agentes criminosos, algo acentuada, normalmente, afirmam, pela origem pobre e a vida na periferia do mundo! Estes certamente questionariam Clarice Linspector, mas correriam o risco de ouvir em resposta o que alguns desavisados, preocupados com a índole precocemente garantista daquela menina, que “não sabia de nada”, ouviram ao censurar-lhe a reprovação às teorias vigentes:

“Um colega nosso classificou este artigo de ‘sentimental’. Quero esclarecer-lhe”, sublinhou Clarice, “que o Direito Penal move com coisas humanas por excelência. Só se pode estudá-lo, pois, humanamente. E se o adjetivo ‘sentimental’ veio a propósito de minha alusão a certas questões extrapenais, digo-lhe ainda que não se pode chegar a conclusões, em qualquer domínio, sem estabelecer as premissas indispensáveis.”

Os alunos da FND tem disso: com freqüência ensinam aos seus professores!

Trata-se da tradição crítica cultivada de maneira muito singular entre eles, que ganha forma em seu Centro Acadêmico, o CACO, e que, apurada em um ambiente em que o saber é construído coletivamente, em prol do conjunto da comunidade, com destaque para o papel transformador do direito, em oposição à tradição geral conformadora, é responsável pela formação de profissionais habilitados a atuar com competência e capacidade para justificar as expectativas da população que financia pelos impostos a Universidade Pública.

Em um contexto globalizado e neoliberal, em que prevalece o individualismo possessivo e o domínio empresarial no âmbito da educação privada, talvez apenas a Universidade Pública possa dar conta do desafio de formar para transformar, desenvolvendo habilidades que qualificam seus estudantes sem sacrificar a humanidade de que nos falava Clarice.

A confiança que compartilho com seus pais, irmãos, maridos, mulheres, filhos/as e amigos, de que vocês que se formam hoje darão conta do futuro, superando o “frio na barriga”, decorre da certeza de que nesses anos, na FND, aprendemos juntos, na lição de Fábio Konder Comparato, que a razão universal de vida não está pautada na busca exclusiva dos interesses individuais.

Comparato salienta que “a essência da Justiça, tal como a do Amor, consiste na comunhão de vida”.

Solidariedade. Cidadania como expressão da máxima: dignidade para todos!

Vocês provaram nestes cinco anos de que são capazes disso.

Em carta dirigida ao Presidente da República, reclamando dispensa do período de prova de um ano, para adquirir a nacionalidade brasileira, Clarice parecia antever a realização profissional.

A jovem estudante conclui seu requerimento endereçado a Getúlio Vargas afirmando que se fosse dispensada do prazo e declarada brasileira, isso alargaria a sua vida. E arremata, agradecendo pela naturalização, dizendo que “um dia saberei provar que não a usei (a nacionalidade) inutilmente.”

Não tenho a menor dúvida de que é desse modo que cada um aqui se sente em relação à confiança conquistada. O investimento público em sua formação valeu a pena e será empregado na defesa da dignidade de todas as pessoas, unindo humanidade e Justiça!

É assim que vocês se despedem, temporariamente, da FND até porque a nossa ligação com a Nacional é indissolúvel.

Parabéns!

Geraldo Prado

Janeiro de 2011.

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