terça-feira, 8 de maio de 2012

Manipulação

Em agosto de 1996, em exercício como juiz de direito na 2a. Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, publiquei o seguinte artigo em O Globo.
No recenseamento das atividades judiciais, que levo a cabo para fins acadêmicos, sem dúvida que lidar com as tensões daqueles dias de pressão pela incriminação de adolescentes revela-se, retrospectivamente, um dos momentos de definição de minha trajetória pessoal.
Fica o registro.


Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 24 Agosto 1996
Página: 6, 6
Edição: 1
Editoria: Opinião
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Série: textos~104207232

Manipulação

GERALDO PRADO
Ao Estatuto da Criança e do Adolescente comumente tem se atribuído muitas virtudes e pecados. Porém, nesta semana, a maior autoridade da área de segurança pública do Rio de Janeiro, responsável por garantir a ordem pública em todo o estado, reacendeu a polêmica e, talvez sem querer, incluiu na discussão até a própria Constituição, ao "acusar" a legislação atual de incentivadora da delinqüência juvenil.
Mais grave que a proposta de se alterar o artigo 228 da Constituição e a filosofia criminalizante que a inspira sem dúvida está, segundo creio, o objetivo de manipulação dos meios de informação, e através deles da opinião pública, no sentido de difundir duas idéias igualmente graves: a primeira delas consiste em se fazer crer que o Estado tem feito tudo a seu alcance e, apesar disso, não consegue debelar a séria questão da criminalidade de adolescentes; e, como conseqüência, que somente endurecendo o tratamento dispensado aos jovens em conflito com a lei seria possível obter-se resultados mais significativos.
Só quem não conhece as instituições de atendimento a adolescentes infratores tem condições de acreditar que os atuais esforços do Governo ao qual pertence o ilustre secretário são suficientes para dotar o Rio de Janeiro de uma estrutura adequada, capaz de realizar profundas inserções junto às famílias dos adolescentes processados e assim criar condições de impedimento da reincidência.
Hoje, pelo contrário, o Instituto Padre Severino, a Escola João Luiz Alves e os Criams - herdados, sublinhe-se, do Governo Federal - estão muito aquém das condições ideais de funcionamento, sendo alvos de constante fiscalização judicial. É razoável supor que se as instituições do Governo a que pertence o secretário funcionassem corretamente, a repetição de crimes de adolescentes, quase sempre determinada pelos desajustes familiares, a ausência de atendimento nas redes de saúde e ensino, além da precária oferta de trabalho, seria bem menor que a aquela hoje verificada.
Todavia, apesar da quase falência da rede atual, é importante que se saiba que no Rio de Janeiro não mais de 300 jovens estão internados, contra cerca de 15 mil adultos presos, com a manifesta vantagem de, ao custo do esforço ainda muito grande de diversos militantes, alguns, funcionários das instituições do estado, termos números reduzidíssimos de reincidência, quase sempre relacionados a poucos adolescentes - justamente aqueles que sempre são vistos em determinadas áreas, cometendo infrações.
Vale a pena destacar que na adolescência a descoberta do mundo e a crença no "poder invencível da juventude" contribuem para levar nossos jovens a praticar atos dos quais, mais tarde, maduros, irão se arrepender.
Para estes jovens, de todas as classes sociais, autores, na maioria das vezes, de atos de escassa gravidade, a proposta que se quer ressuscitar consiste em marcá-los definitivamente com o estigma do processo criminal, no lugar de orientá-los e provar que nós, adultos, somos razoáveis e decidimos as graves questões sociais com serenidade, deixando a paixão envolver apenas o mais belo sentimento cristão, de amor ao próximo.
GERALDO PRADO é juiz titular da 2 Vara da Infância e Adolescência.

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