domingo, 13 de junho de 2010

Poder Negocial...: Em busca de um milhão de presos!? Parte IV

Os últimos dias foram "invernais"! Um fortíssimo resfriado me afastou de praticamente todas as atividades e, para dizer "a verdade", sequer fui compensado com algum jogo desta fase inicial da Copa do Mundo que tenha valido a pena ver... salvo pelo "frango" do elegante goleiro inglês.

Vamos, porém, ao que interessa.
Hoje eu prossigo com mais uma etapa dos assuntos desenvolvidos na palestra que proferi no Seminário promovido em São Paulo, no dia 02 de junho último, pelo IBCCRIM, AJUFE e AMAG, sobre o projeto de Código de Processo Penal em tramitação no Senado (link no primeiro post da série), acerca do Poder Negocial.
E falarei da problemática "questão da verdade" no processo penal.
  1. Inicio por afirmar que ambos os modelos, acusatório e inquisitório, reivindicam a verdade como sua "fonte de legitimação".
  2. Mais importante do que tentar determinar o que em ambas as estruturas conceitua-se como verdade - até pela razão de que não há consenso a respeito - registro que há um "uso político" da verdade, nos dois casos, que merece a nossa atenção e que é por conta desse uso político que é travada a disputa em torno dos poderes dos sujeitos processuais.
  3. Na obra de Taruffo citada nos posts anteriores (como em vários de seus outros livros, tais como La Prueba - Marcial Pons, Madrid, 2008, e La prueba de los hechos, Trotta, Madrid, 2002), o professor italiano irá destacar a crítica dirigida pelo pensamento jurídico continental europeu ao fato de o processo adversary entregar as provas em aparente exclusividade às partes.
  4. Muito claramente Taruffo relata que os críticos do adversary system salientam que as manifestações mais "fortemente degenerativas" decorrem da incapacidade da atividade das partes conduzir a conhecimentos "verdadeiros" acerca dos fatos da causa e assinala que por "conhecimentos verdadeiros" se deve entender "as reconstruções suficientemente aproximadas à realidade dos fatos que devam ser comprovados" (p. 43 da obra citada).
  5. O tema é relevante para nós por aquilo que, em Derecho y Razón (Teoria del Garantismo Penal, 4ª ed., Trotta, Madrid, 2000, p. 69), Luigi Ferrajoli sublinhará como fundamento da legitimidade do exercício do poder punitivo, na sociedade democrática contemporânea, tal seja, a verdade postulada em um processo orientado em direção à verificação dos fatos penalmente relevantes, por métodos que operem à base do cognoscitivismo.
  6. Esta verdade processual invocada como fonte de legitimidade diferenciará os modelos inquisitório e acusatório, conforme a visão de Ferrajoli, entre outros motivos, por não expressar o subjetivismo judicial que, toldado pela ilusão de uma "verdade real", supostamente estaria a autorizar o juiz penal a partir em busca dos elementos que comprovarão no mundo dos fatos a argumentação de uma das partes!
  7. A impossibilidade de uma completa correspondência entre o fato (situado, pois, no passado, como o nome indica) e a imagem do fato na mente do juiz, a necessária imparcialidade do julgador, como garante da existência do próprio processo penal no Estado de Direito, e os bloqueios éticos à aquisição das informações (proibição das provas ilícitas) separam rigidamente as estruturas acusatórias das de índole inquisitorial.
  8. Ferrajoli, porém, não estreita a crítica, fixando-a somente em relação aos modelos que fortalecem a posição do juiz, quer na gestão da prova, quer no plano da iniciativa para o processo, quando é conformada a imputação nas diversas etapas da persecução (redação do artigo 384 do CPP antes da reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08).
  9. O autor de Direito e Razão aduz que a disputa por legitimidade envolve, claro, todas as formas de resolução das questões penais que "dispensam" ou "demitam" a verdade do posto de base ou fundamento da própria decisão.
  10. E, é claro, neste contexto as diversas manifestações de "transação penal" do Commom Law encontram-se no foco da discussão, uma vez que o acordo entre as partes prescinde da verificação dos fatos em juízo.
  11. Este é o ponto de vista dominante na formação jurídica continental europeia acerca do (inexistente) papel da verdade no processo penal estruturado na conformidade do acusado à pena negociada.
  12. O olhar do Commom Law sobre o assunto, todavia, é outro.
  13. A começar, Taruffo assinalará que a par da impossível definição unitária de um modelo adversary, provavelmente o "único conceito ordenador que se pode considerar exclusivamente típico do adversary system é o da passividade do juiz árbitro na busca da verdade" (op. cit., p. 5, grifo nosso). Em seguida, porém, revelará o quanto isso não é totalmente "verdadeiro", sequer no sistema de justiça norte-americano.
  14. Em linhas gerais, a ideologia dominante no Common Law acerca da verdade aponta para a crença na "fight theory of truth", em virtude da qual a mais ampla oportunidade das partes terem acesso às informações que fundam as suas pretensões em juízo sempre inspirará o comportamento dos adversários/litigantes, que assim buscarão a melhor solução para o seu conflito, como reflexo dessa verdade possível de ser determinada judicialmente em um "duelo intelectual".
  15. Nisso jogam categorias e crenças próprias deste sistema. Desde a discovery, ainda que pesando "a disparidade institucional entre o MP e o imputado" (Taruffo, op. cit., p. 11), mas que por conferir às partes, no preâmbulo do procedimento, o conhecimento acerca das armas do adversário, persegue a redução da influência de fatores não derivados da racionalidade jurídica (limitando o espaço de atuação de uma "sporting theory of justice"), até a convicção de que a técnica do "cross examination", como metodologia para a assunção da prova, viabiliza a produção dessa verdade.
  16. O que parece exato nisso tudo é que Common Law e direito continental europeu, de que somos herdeiros, não falam de uma mesma "verdade" como fundamento de legitimidade do exercício do poder punitivo.
  17. O discurso sobre a "verdade" é distinto em ambos e opera a partir dos objetivos perseguidos onde imperam, como expressão da visão peculiar do mundo que as respectivas sociedades compartilham.
  18. De um lado a verdade como a "reconstrução suficientemente aproximada à realidade dos fatos"; de outro a verdade como "dominada" pelas partes, que dela fazem o melhor uso, quer em virtude de seus interesses expressos em juízo, quer pela técnica do "cross examination", sem, contudo, defini-la!
  19. Em "A verdade e as formas jurídicas" (Nau, Rio de Janeiro, 2005) Michel Foucault advertia para o "discurso como esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro" (p. 9, grifo nosso).
  20. É nesse plano "estratégico" que deslizam os dois discursos e suas derivações.
  21. Sem dúvida que por tudo o que mencionei nos posts anteriores, a opção pelas soluções negociadas de casos criminais haveria, ela própria, de adaptar-se aos discursos legitimadores que circulam no mundo da vida. De outro modo, a "transação penal" perderia seu status de técnica aceitável de resolução dos casos penais.
  22. Por último, relembro que na obra de Foucault que mencionei, ao relatar a caminhada do "inquérito"/busca da verdade na constituição da técnica do poder penal por excelência, o filósofo separou também rigorosamente os métodos de solução de litígios entre os que buscam a composição do conflito (ver o mito da história da contestação entre Antíloco e Menelau - Conferência 2) e os que tem por base a verdade.
  23. Em minhas aulas tenho dito que os modelos acusatório e inquisitório tocam à busca da verdade e que as soluções penais consensuais tratam de coisa diversa e por isso não se enquadram, diretamente, em quaisquer desses modelos.
No próximo post falarei das "estratégias" das partes, na negociação sobre a pena, e como o projeto 156 cuida disso.
Bom domingo para todos!

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