Discurso de
agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida
pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro
de 2011
ao advogado
Nilo Batista
III
O
olhar acima remetido ao sistema penal de hoje poderia ser acoimado de
corporativista, já que lançado da janela da advocacia criminal. Experimentemos,
portanto, outra angulação.
Em
1988, tínhamos uma população carcerária em torno de 100.000 internos. Naquele
ano, a Assembléia Nacional Constituinte promulgou a Constituição, declinando
como primeiro objetivo fundamental da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I
CR).
De
lá para cá, vinte e três anos se passaram, e é razoável supor que as autoridades
constituídas tenham trabalhado intensamente na construção dessa “sociedade livre”.
Temos
hoje aproximadamente 500.000 internos e 700.000 pessoas sob controle de
agências do sistema penal (suspensões condicionais do processo ou da pena,
livramento condicional, penas restritivas de direitos etc), totalizando
1.200.000 brasileiros criminalizados.
Ou
seja, para construir uma “sociedade livre”
prendemos – seja com as grades da penitenciária, seja com a tornozeleira
eletrônica, seja com a supervisão periódica de uma agência do sistema penal –
prendemos doze vezes mais gente do que encontráramos por ocasião do marco zero
da redemocratização.
Para
quem acredita que a privação de liberdade ressocializa, talvez não pareça
estranho construir uma “sociedade livre”
prendendo massivamente.
Contornemos
a prudente distância as interpretações deste inchaço no encarceramento
produzido após a chamada “Constituição cidadã”, especialmente aquelas
interpretações que remetem à transição do capitalismo industrial para o
capitalismo transnacional vídeo-financeiro, às transformações macroeconômicas
pelas quais já passamos e, tudo indica, ainda estamos passando. Todos temos
nossas interpretações, divergentes e por vezes antagônicas: a minha é bastante
conhecida, e nem tive muito como ser discreto a seu respeito. Contudo, não
precisamos de interpretações quando há unanimidade acerca do fato escandaloso
de estarmos vivendo o maior encarceramento de nossa história. Compartilhamos
essa vergonha, e podemos perfeitamente dispensar-nos de divergir sobre suas
origens, já que estamos de acordo quanto a sua presença.
IV
A
chamada militarização da segurança pública constitui um sintoma muito
preocupante. O envolvimento das Forças Armadas em tarefas policiais é algo
corrosivo para os rígidos padrões da organização militar e simultaneamente
dinamizador de abusos e violências para a instituição policial.
Forças
Armadas bem adestradas e equipadas constituem o pressuposto essencial de nossa
soberania. Destinou-as a Constituição “à defesa da Pátria e à garantia dos
poderes constitucionais”; seu emprego supletivo, por iniciativa dos poderes da
República, na manutenção “da lei e da ordem” (art. 142 CR) deveria
restringir-se às hipóteses de Estado de Defesa e Estado de Sítio. Aliás, apenas
lei complementar poderia dispor sobre o emprego das Forças Armadas (art. 142, §
1º CR), e nunca um mero decreto ou mesmo uma lei ordinária. Vulgarizou-se
todavia a participação militar em conflitos civis criminalizados. Conheci de
perto o início dessa vulgarização, sobre o qual pretendo um dia discorrer. O
que ora desejo ressaltar é que existiu um projeto, oriundo do hemisfério norte,
de converter as Forças Armadas latinoamericanas em milícias lançadas ao
retumbante fracasso da chamada guerra contra as drogas, e que tal projeto –
intencionalmente ou não – resulta numa deterioração dos contingentes assim
empregados (policização). Quem tiver alguma dúvida, olhe para a experiência do
México.
A
aproximação entre o poder militar e o poder punitivo tem efeitos desastrosos
para o Estado de direito. As Forças Armadas são para a guerra assim como a
instituição policial é para a lei. O militar é adestrado para o inimigo, o
policial para o cidadão. A guerra se resolve pela força, a criminalização pelo
direito. Na estrutura militar, a obediência integra a legalidade; na estrutura
policial, a legalidade é condição prévia da obediência. Não estamos diante de
adestramentos similares ou assimiláveis; pelo contrário, são eles bem
distintos, e dirigidos a situações também muito distintas. Olhem para o século
XX, o século dos genocídios: perto de cada um deles há sempre uma polícia
completamente militarizada ou Forças Armadas exercendo funções policiais. As
fotos dos choques-de-ordem nazistas não serão suficientemente didáticas? O
sistema de responsabilização é também radicalmente diferente. Não há ordens
vinculantes para o policial, adstrito a aferir a legalidade de todas e de cada
uma delas antes de executá-las; num teatro de guerra, tal rotina desaguaria em
cômica derrota.
Entre
os paradoxos dos tempos sombrios que vivemos está o fato de ter tocado aos
governos civis posteriores à Constituição a militarização da segurança pública.
Sim, com exceção do subsistema penal DOPS-DOI/CODI, que se ocupava estritamente
dos então chamados crimes contra a segurança nacional, não passou pela cabeça
de nenhum general alçado à Presidência da República expandir competências
militares na direção da segurança pública. Talvez latejassem em suas
consciências as enérgicas palavras com as quais o Marechal Deodoro da Fonseca,
em 1887, na condição de presidente do Clube Militar, pleiteou da Princesa
Isabel, no exercício da Regência, que o Exército não fosse empregado naquilo
que chamou de “papel menos decoroso e menos digno”, referindo-se à captura de
escravos foragidos. Nossas Forças Armadas não podem converter-se numa espécie
de capitão-do-mato dos quilombos urbanos que o neoliberalismo agigantou.
Para
encerrar o rol dos paradoxos, miremos este estranho personagem glorificado pela
mídia e aplaudido em cena aberta, o intimorato Capitão Nascimento. Trata-se,
sem dúvida, de um torturador; um assumido e convicto torturador. Como
compreender que durante a ditadura o torturador fosse olhado – e assim continua
a ser olhado hoje – como um vilão, como uma criatura degradada e repulsiva, e
hoje um torturador seja uma espécie de herói nacional?
V
Voltemos
nossos olhos para os juízes. Eu gostaria de poder, como Calamandrei, elogiá-los
a todos, inclusive ao que dormita durante a sustentação (e não seria difícil
ressaltar-lhe a elevação espiritual, que troca o mesquinho debate sobre
interesses terrenos pela transcendência dos sonhos). Temo, contudo, que esses
tempos sombrios tenham produzido uma nova espécie de juiz que talvez nem
Calamandrei conseguisse elogiar.
A
construção da persona judicial no
ocidente constitui um longo e inconcluso percurso. Muitos traços de
estereótipos judiciais históricos subsistem na cultura forense, e às vezes
irrompem, quais fantasmas, nas salas de audiência republicanas. Aquele iudex perfectus que o direito canônico
desenhou, espelho decaído do Julgador Onipotente, dispensado de toda
fundamentação pela fiança de suas virtudes, não se deixa entrever por vezes em
algum magistrado nosso contemporâneo, apesar dos séculos que os separam? Qual
advogado, numa carreira longa, jamais esbarrou no iudex solutus, naquele juiz delegado da jurisdição real
absolutista, e por isso mesmo tão arbitrariamente soberano em suas decisões,
tão desvinculado da lei quanto o próprio monarca legibus solutus? E o inquisidor, aquele juiz que participou
ativamente das investigações e até mesmo da formatação da acusação, e cujo ódio
ao herege ou à bruxa turva-lhe a visão ao ponto de não perceber que em todos os
casos ele está na verdade julgando a si mesmo? Entre as hipertensões que foram
bater à CAARJ, quantas não se originaram do juiz positivista, do juiz bouche de la loi, que no marco da
Exegese pretende resolver conflitos sociais valendo-se da gramática? E, na
volta do pêndulo, com o juiz do direito livre, este nefelibata cordial que
pretende transformar o mundo com sentenças reformadas, quantos hipertensos a
mais na porta da CAARJ? Encontraríamos muitas outras máscaras, como o asséptico
juiz “puro” kelseniano, a mesa mais impecável e organizada do foro, ou o juiz
neokantista em cujo gabinete as cortinas estão sempre fechadas para impedir a
visão da realidade. Nem há como evocar todos esses estereótipos aqui, nem muito
menos como reduzi-los aos personagens dworkianos dos juizes Hércules e Hermes,
com suas peculiares visões acerca da significação e do raio de alcance jurídico
do material legislativo a partir do qual intervém a judicatura.
Penso
ser possível, nesses tempos sombrios, uma nova tipologia que, pelo menos no
âmbito da justiça criminal, pode ser instaurada, com todos os riscos de algum
maniqueísmo, em duas figuras.
De
um lado, teríamos o juiz Salomão. Fui buscar o nome exatamente no filho de Davi
e Bate-Sebá, porque ao investir-se na ampla jurisdição real ele não pediu ao
Senhor nem poder nem força, mas sabedoria e prudência para “guardar os
estatutos” e ainda um “coração compreensivo para julgar”; e também porque o
Senhor rejubilou-se por não ter ele pedido a morte dos inimigos, e aconselhou-o
não só a castigar a culpa mas também a justificar o inocente. Na sentença das
duas prostitutas que disputavam a criança, para além do emprego indiciário do
amor materno está a falta de qualquer olhar punitivo sobre a infeliz que, tendo
perdido acidental e tragicamente, quando dormiu sobre ele, o próprio filho,
procura insensatamente remediar a dor que a consome ressuscitando-o num bebê
alheio. Ao contrário dos âncoras da TV que rancorosamente noticiam as não raras
repetições dessa tragédia, o sábio juiz Salomão não quis castigar alguém já tão
castigada: ou os sistemas penais porventura lograram inventar alguma pena mais
cruel do que a perda de um filho? O juiz Salomão é hoje o guardião inexpugnável
das garantias do acusado: ele “guarda os estatutos”. Sua principal e
insubstituível tarefa é impedir o exercício inconstitucional, ilegal ou
irracional do poder punitivo. O juiz Salomão conhece os riscos da exposição
pública dos casos, e não só se protege a si mesmo deles como opõe-se ao
esquartejamento moral do suspeito ou do acusado, este esquartejamento virtual que
viria a substituir, em nossos tempos, o esquartejamento corporal dos convictos
por lesa-majestade. O juiz Salomão se consideraria indigno das garantias que a
Constituição lhe outorgou se, a partir delas, não construísse uma cabal
independência do poder econômico, do poder político – inclusive do poder
punitivo – e do poder ilegítimo da mídia. É a firmeza do juiz Salomão que
impede a ascensão do Estado de polícia, que sempre avança através do sistema
penal, das opressões punitivas. Discreto, preparado, de “coração compreensivo”
– e pois compassivo com os infortúnios, os vícios, os sofrimentos e as
desgraças que constituem a matéria da jurisdição criminal – o juiz Salomão é um
pilar frontal do Estado de direito.
De
outro lado, porém, temos a emergência de outra figura de juiz. Este juiz não se
identifica com a função de tutelar as garantias constitucionais e legais do
suspeito ou do acusado, mas ao contrário crê que sua função é debilitá-las ao
máximo para favorecer a criminalização secundária. Para ele, as garantias
constitucionais de que dispõe ornamentam sua autoridade pessoal. Ele acredita
na pena e no discurso comprovadamente falso das teorias legitimantes da pena.
Frequentemente cristão, esqueceu-se de que Cristo foi condenado e executado por
um magistrado bem expedito, cuja rapidez no julgamento e na execução da pena
ultrapassaria as melhores expectativas atuais de produtividade do Conselho
Nacional de Justiça. Este juiz jamais se convenceu de que exista prova ilícita;
nesta locução, entrevê ele uma contraditio
in adjecto. Durante a instrução, é difícil perceber se o maior afinco e
devotamente na demonstração da hipótese acusatória é dele ou do Ministério
Público, a cujo representante jamais negou um só requerimento. Bem diverso é o
tratamento que defere aos advogados, e especialmente aos mais humildes. No
fundo, para ele a advocacia criminal é uma cumplicidade ex post facto. Esses reality
shows judiciários, com o suspeito sendo preso à luz das câmeras e exibido –
sabe-se lá com qual autorização constitucional ou legal – pela polícia contam
geralmente com sua participação no roteiro. Para obter cópias do procedimento,
e poder examinar a base probatória do indiciamento ou da acusação, o advogado
enfrentará muitas dificuldades, ao contrário dos jornalistas, que disporão de
documentos e gravações inacessíveis aos defensores. A subordinação deste juiz
aos anseios da turbamulta midiatizada, sequiosa de humilhações,
constrangimentos e quem sabe alguma violência, me levou a designá-lo por juiz
Pilatos. Só que, ao contrário de seu patrono histórico, de cuja insensibilidade
e arrogância resultou um sacrifício para a redenção da humanidade, o juiz
Pilatos representa a perdição do Estado de direito, que por suas mãos sujas de
sofrimento punitivo está sendo asfixiado pelo Estado de polícia.
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