Discurso de
agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida
pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro
de 2011
ao advogado Nilo
Batista
VI
Quero
rapidamente – tentando efetivar a promessa do discurso breve – pedir a atenção
de meus Colegas para a cultura punitiva na qual estamos imersos.
A
pena se converteu numa espécie de emplastro Braz Cubas para todas as mazelas
nacionais; não há um só problema, um só conflito ao qual o Congresso Nacional
não queira responder com o emplastro da criminalização primária (ou, quando ela
já exista, com um aumento na escala penal ou um endurecimento no regime
penitenciário).
Aquilo
que jamais é enunciado, que permanece como um saber meio herético e meio
insurgente, é o fracasso exaustivamente comprovado da pena cominada como
modelador da conduta humana e da pena executada como instrumento das utopias
ressocializadoras. No campo das ciências sociais o behaviorismo está
desacreditado, e muitos autores, como Skinner, duvidavam da eficácia motivadora
do castigo; correlatamente, em todas as ocasiões nas quais efeitos preventivos
da pena puderam ser objeto de pesquisa
empírica, não foram comprovados. A reincidência penitenciária, cujas oscilações
históricas nunca se afastam muito dos 70%, é a melhor demonstração de que a
verdadeira obra da sociabilidade carcerária reside na reprodução da identidade
infratora. Se impusermos coercitivamente a uma centena de infratores qualquer
espécie de restrição de direitos que não envolva privação de liberdade, não
sabemos quantos reincidirão; mas se os lançarmos numa penitenciária, sabemos
que cerca de setenta reincidirão. Pois apesar dessas constatações, o Congresso
Nacional e a mídia (talvez a ordem mais correta fosse a mídia e o Congresso
Nacional), secundados por muitos operadores do sistema penal, seguem
acreditando que o homem pode ser comportamentalmente manipulado, como o
cachorro de Pavlov, e que a penitenciária é um lugar de reconstruir vidas (a
despeito de que, em nosso continente, todo preso tenha dez vezes mais
possibilidades de matar-se ou de ser morto do que nós).
A
responsabilidade da mídia para com este quadro é evidente, e por mais bisonhos
ou estúpidos que sejam os editoriais acerca do tema, o valor democrático da
liberdade de imprensa torna-os intangíveis. Quanto ao noticiário sobre casos
criminais, investigações ou processos, em minha opinião a coisa muda de figura.
Existem, em países democráticos, muitos modelos restritivos nos quais
poderíamos nos inspirar no momento de proceder à regulação deste setor. Muitos
tribunais, a começar pela Suprema Corte estadounidense, e inúmeros estudiosos
já perceberam os riscos do chamado trial
by the media. Estamos aqui no campo de conflito entre o princípio da
liberdade de informação e vários outros princípios, situados entre a presunção
de inocência e o direito a um julgamento justo. Afirmo desta veneranda tribuna
que a licenciosidade informativa, no circo dos “furos” da reportagem policial,
na exposição de suspeitos ou acusados, na dignificação dos explicáveis
sentimentos de vingança da vítima ou de seus familiares e em tantas outras
frentes implica uma perda de qualidade na prestação jurisdicional e resulta
frequentemente num linchamento virtual irreversível, mesmo quando sobrevenha
uma absolvição. Será isto compatível com um Estado de direito cuja Constituição
se comprometeu com a “dignidade da pessoa humana”, e declarou invioláveis “a
honra e a imagem das pessoas” (arts. 1º, inc. III e 5º, inc. X)?
A
cultura punitiva tem seu mais importante núcleo reprodutor na academia,
refletindo-se diretamente na teorização jurídica e dela recebendo – na voz
frequentemente leviana de certos “especialistas” – oportuna retroalimentação.
Para ficar num exemplo, pensemos em duas concepções de delito que sempre se antagonizaram:
para uma, sua essência estaria na desobediência (na violação da norma); para
outra, na ofensa produzida (no dano ou no perigo concretamente realizados). Há
uma relação histórica incontestável entre a primeira concepção e o Estado de
polícia; não por coincidência, o direito penal nazista identificou-se e foi
identificado como direito penal da vontade, e seus penalistas entreviam em cada
conduta típica exercida uma espécie de traição ao Estado. Está hoje, entre nós,
disseminada concepção similar, senão em suas premissas teóricas – que o pudor
pode silenciar – certamente nas consequências (criminalização de atos preparatórios,
crimes de perigo abstrato, formatação de delitos-obstáculo, rejeição da
insignificância, punibilidade omissiva do descumprimento de deveres inúteis
etc). Valha-nos como exemplo o parágrafo único do artigo 304 do Código de
Trânsito Brasileiro, que para vergonha do penalismo nacional, apregoa praticar
omissão de socorro o motorista que “deixar de prestar imediato socorro à vítima
(...) ainda que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos
leves” – dois casos, por certo, nos quais se impõe ao sujeito um dever inútil.
Não
me deterei sobre a metástase da indústria cultural do crime, sobre esses
enlatados que expõem a brutalidade da convivência carcerária, a frieza de justiceiros
travestidos de policiais e até mesmo de juízes e, claro, a crueldade patológica
de delinquentes cuja morte desperta no espectador uma estranha catarse, que a
Profa. Verinha Malaguti Batista caracterizou como “adesão subjetiva à
barbárie”.
Também
não me deterei sobre a criminalização da vida pública, tão útil para consumar o
exílio do debate político, e tão representativa da centralidade que a questão
criminal indevidamente adquiriu.
Até
onde o Estado de direito suportará esta centralidade? Até quando o Estado de
direito conviverá com os deprimentes espetáculos punitivos que parecem dispor
de bem equipadas centrais de produção? Outro dia, alguém no Rio selecionou
quarenta mandados de prisão de quarenta processos completamente diferentes, com
protagonistas e circunstâncias radicalmente distintas, para comemorar uma data
relativa à violência doméstica com a exibição inconstitucional e ilegal de
suspeitos, acusados ou condenados. E, há duas semanas atrás, em São Paulo, a
Prefeitura e a Polícia Militar se conveniaram para enfrentar ... a gazeta
escolar. Sim, isso mesmo, a Polícia vai correr atrás dos estudantes que estão
“matando aula”: será que foi esta expressão, matar aula, que levou a prefeitura
a reeditar no primeiro grau o que a administração do Estado já fizera na USP? O
que falar de mulheres dando à luz algemadas?
Nesses
tempos sombrios, é como se a pena se transformasse numa divindade, tal a crença
em suas propriedades preventivas e expiatórias. Mas, queridos Colegas, olhemos
para a história: sempre que um sistema penal se articulou em torno de uma
divindade sua destrutividade foi incrementada, como na Inquisição. Por outro
lado, sempre que a multidão pediu mais pena, mais e maiores condenações, mais
sofrimento punitivo, a irracionalidade dominara: foi assim no nazismo.
O
que nos espera? O cenário internacional é tenebroso, e caberia pensar,
recorrendo a uma categoria política fora de moda, no advento de um imperialismo
punitivo, que sob o lema – de cariz policial – da “proteção” é capaz de depor e
matar, com ou sem figura de juízo, Chefes de Estado não alinhados, ou mesmo de
cometer e comemorar um homicídio a sangue frio, e nem falemos de Guantánamo e
do emprego autorizado da tortura.
O
que nos espera aqui? Até onde o Estado de polícia chegará em sua ascensão
constante, já sedimentada num fascismo social cujas marcas estão por toda
parte?
VII
Na
pessoa de um advogado criminal, o Instituto dos Advogados Brasileiros quis este
ano homenagear a advocacia criminal.
Compartilho
com todos os criminalistas brasileiros, dos Colegas aqui presentes aos mais
distantes, empenhados todos na mesma luta de preservar o Estado de direito, a
medalha recebida. Essa luta, dispersa e capilarizada, é agora mais importante
do que nunca. Pouco importa se hoje somos olhados com preconceito e
incompreensão. A história, que decanta e ilumina os acontecimentos, reservará
para esses lutadores anônimos respeito e gratidão.
Senhor
Presidente, exímio criminalista, filho e pai de criminalistas, muito obrigado.
Aos distinguidos Advogados que integram o Conselho Superior, muito obrigado.
Os
criminalistas procuraremos ser dignos da Medalha Teixeira de Freitas que hoje
recebemos.
Muito
obrigado.
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