Discurso de
agradecimento pela medalha Teixeira de Freitas,
concedida
pelo Instituto dos Advogados Brasileiros
em 14 de dezembro
de 2011
ao advogado
Nilo Batista
Excelentíssimo
Senhor Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros,
Minhas
Colegas e meus Colegas Advogados,
Autoridades
presentes,
Minhas
Senhoras e meus Senhores,
I
Este
pequeno – tranquilizem-se todos – este pequeno discurso teve um nascimento mais
difícil do que o de todas as alegações finais, memoriais ou artigos acadêmicos
que escrevi na vida. Os amigos mais próximos sabem que, semialfabetizado
digital, continuo a escrever valendo-me de uma caneta bic e de um bloco pautado. Não tenho a conta das folhas amassadas
que atirei à cesta de lixo: a gravidez do discurso foi de alto risco, e em
muitas ocasiões perguntei-me se chegaria ela a termo. Ao invés do desejo por
comidas exóticas, instalava-se em mim um estranho sentimento, uma espécie de
inveja da posição confortável de nosso generoso Colega Carlos Eduardo Bosísio.
Sim, das entranhas convulsas provinha a convicção de que elogiar – mesmo quando
o objeto dos encômios definitivamente os não mereça – elogiar é muito mais
fácil do que agradecer. Muito mais fácil. Recordemo-nos da desenvoltura com que
Erasmo elogiou a loucura, sem deixar de nos espicaçar nela incluindo os
jurisconsultos que segundo ele “amontoam glosas sobre glosas, citações sobre
citações” e ainda “julgam-se os primeiros sábios do mundo”... E o que pensar de
Calamandrei, que lepidamente conseguiu elogiar todos os juízes, todos eles, até
aquele que dorme durante a sustentação, no qual descobriu prodigiosamente a
virtude da discreção por deixá-lo “à vontade para discorrer sozinho, comigo
mesmo, quando meu discurso já não o interessar”...
Foi
essa descoberta, de que elogiar é muito mais fácil do que agradecer, que
finalmente precipitou o parto, ou melhor a cesariana, já que na confusão
puerperal prevaleceram os meios cirúrgicos artificiais sobre os procedimentos
naturais na vinda ao mundo do discurso. É certo que devo agradecer, e faço-o –
contrita e sinceramente – a nosso Presidente, o ilustre advogado e professor
Fernando Fragoso, e a cada um dos notáveis juristas que integram o Conselho
Superior do Instituto dos Advogados Brasileiros pela honra imerecida com que me
distinguiram, outorgando-me a venerável medalha Teixeira de Freitas. Na pessoa
de minha amada companheira Verinha concentro todo o agradecimento da ordem dos
afetos, no amplo arco que vai de nossos pais que já partiram aos netos que
começam a alegrar-nos, passando pelos queridos filhos que nosso amor reuniu e
criou. É certo ainda que devo agradecer aos mestres de nossa profissão cujas
lições tive o privilégio de haurir, e nas saudades de Evandro Lins e Silva,
Heleno Fragoso e Humberto Teles sintetizo minha gratidão a todos os advogados
criminais com quem compartilhei alguma vez as tensões na apuração dos votos de
um quesito decisivo no júri, e especialmente a meus diletos companheiros de
escritório, de ontem e de hoje. Devo um agradecimento especial a Leonel Brizola,
que me revelou a natureza política das opressões punitivas. Enfim, é certo que
tenho muito a agradecer.
Mas
não é menos certo que devo interpretar essa distinção olhando não para qualquer
eventual merecimento pessoal, mas sim para a crise que o Estado de direito vive
entre nós, acometido pelo Estado de polícia através de seus meios prediletos,
as agências do sistema penal, e para o papel exercido nesta crise pela
advocacia criminal. Recair a distinção na pessoa de um advogado criminal na
atual conjuntura foi um ato firme e eloquente da superior administração de
nosso Instituto na afirmação das franquias, das prerrogativas e das
insubstituíveis funções da advocacia criminal no Estado de direito.
A
compreensão do sentido real da homenagem dessa noite me permitiu, finalmente,
escrever o discurso, o qual, tendo se iniciado como agradecimento, pode
prosseguir – superada assim a inveja do Bosisio – como um elogio da advocacia
criminal exercida em tempos paradoxalmente sombrios.
II
Tempos
paradoxalmente sombrios, foi dito acima, e cabe expor tal paradoxo.
Todos
sabemos que em 1964 a
ordem constitucional foi rompida por um golpe oligárquico-militar,
instalando-se um Estado de polícia cuja superação formal somente ocorreria com
a Constituição de 1988. Na fase mais crítica dessa ditadura, aquela que vai da
edição do Ato Institucional nº 5 até a chamada “abertura”, as violações a
direitos humanos fundamentais e às mais elementares garantias individuais
sofridas pelos suspeitos, indiciados ou acusados de crimes contra a segurança
nacional encontraram na advocacia criminal repulsa, denúncia e uma frustrante
busca de proteção legal. Muitos assassinatos, muita tortura e muitos
desaparecimentos não eram noticiados nos jornais, sob censura do governo. A voz
da advocacia criminal não ecoava, não ultrapassava os cancelos das Auditorias
da Justiça Militar. O habeas-corpus,
suspenso pelo AI-5, convertera-se numa dramática pescaria em águas turvas,
mediante a qual procurava-se saber se o detido ainda vivia: caso as informações
prestadas pelas autoridades do subsistema penal DOPS/DOI-CODI fossem negativas,
quer dizer, caso a detenção (atestada por companheiros do detido) fosse negada,
o paciente tinha sido executado ou não resistira à tortura. Acessar os autos de
Inquéritos Policiais Militares era tarefa em muitos casos impossível, sob a
alegação de um sigilo que envolveria a segurança do Estado. Manter contacto
pessoal e reservado com o cliente era, na fase investigatória, algo
inalcançável, e durante o processo algo muito racionado. Embora na Justiça
militar, destacadamente no Superior Tribunal, os advogados não fossem
discriminados, nos aparelhos repressivos geravam-se preconceitos que chegariam
até mesmo à breve prisão de alguns dos mais destacados, como se deu com Augusto
Sussekind, com George Tavares e com o pai de
nosso Presidente, o Professor Heleno Fragoso. Nunca me esquecerei da firmeza
com a qual o batonnier Ribeiro de
Castro reclamou ao então Comando do Iº Exército a soltura dos advogados.
Transportemo-nos
para os dias de hoje, e neste vôo de quatro décadas enfatizemos o ano de 1988,
que simbolizaria, na promulgação da Constituição da República, a superação
histórica do Estado de polícia e a implantação do Estado de direito.
Temos
entre os presentes muitos homenageados, porque a medalha Teixeira de Freitas
foi hoje concedida à advocacia criminal, e um fragmento dela fulge no peito de
cada criminalista. Esta especialidade profissional, quando exercida por certo
período, dota o advogado – como observei há tempos – de uma antena muito
sensível, pelo permanente confronto com o poder punitivo. A advocacia criminal
se manifesta quase sempre – ressalvadas atuações específicas e minoritárias, a
exemplo da assistência de acusação – como contrapoder, e essa praxis nos adestra para a percepção
antecipada de restrições a direitos e de flexibilização de garantias. Em suma,
os advogados criminais por vezes conseguimos, como os meteorologistas,
adivinhar a borrasca de amanhã pelos ventos de hoje.
Gostaria
de lançar algumas perguntas a meus Colegas criminalistas.
Ocorrem
frequentemente, hoje, em nosso país, violações a direitos humanos fundamentais?
Suspeitos,
indiciados e acusados têm hoje, de modo geral, suas garantias individuais
preservadas? Caso alguma dessas garantias lhes for sonegada, obtem-se hoje
prestamente proteção legal, com sua imediata restauração?
“Dois terroristas foram mortos pela polícia
ontem” – eis uma pequena notícia que se estampava por vezes nos jornais
censurados do início da década de setenta. Porventura na imprensa livre de hoje
se poderia ler algo similar, a exemplo de “dois
traficantes foram mortos pela polícia ontem”? Aqui, a única resposta
correta seria: todo dia.
A
voz da advocacia criminal dispõe hoje de alguma ressonância? Ou, como já foi
registrado pela criminologia da comunicação, a imprensa só se interessa e
divulga versões acusatórias, salvo quando tem a oportunidade de ridicularizar o
argumento canhestro de algum Colega inexperiente ou inábil?
Hoje,
em tempos de intensa punitividade, observa-se nos tribunais tendência a
dilargar ou a restringir o alcance do habeas-corpus?
Acessar
hoje os autos de certos inquéritos ou mesmo de certas medidas liminares é
porventura mais fácil do que era acessar os autos dos Inquéritos Policiais
Militares?
A
entrevista pessoal e reservada, este ponto de partida indeclinável do
relacionamento profissional, esta condição impostergável do aconselhamento
advocatício, realiza-se hoje sem maiores obstáculos?
O
advogado criminal é hoje compreendido como elemento “indispensável à administração da Justiça”, tal qual preconiza a
Constituição da República (art. 133 CR), ou é preconceituosamente visto com
suspeição, como uma espécie de cúmplice ex
post facto do delito?
O
advogado é hoje “inviolável por seus atos
e manifestações no exercício da profissão” (art. 133 CR), ou é
frequentemente criminalizado, aqui pela linguagem enérgica – que, enquanto
aderida à discussão da causa, deveria ancorar-se na libertas convinciandi (art. 142, inc. I CP) –, ali pelo desacato –
sem fundamentação convincente expurgado dos “limites da lei” pela Corte Suprema –, acolá pelo autoritário tipo
legal da desobediência, mais adiante sob outros pretextos?
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